Como um dos alicerces para construção e progresso de uma economia competitiva, a proteção da propriedade industrial é requisito essencial para o desenvolvimento de uma nação. No Brasil esta proteção está inclusive positivada na Constituição Federal em seu Artigo 5º inciso XXIX, garantindo ao titular deste direito, o privilégio temporário para utilização e exploração econômica, com exclusividade, de suas criações (*1), tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.
Com a entrada em vigor da Lei nº 9279/96 (LPI), que foi formulada justamente para incorporar à legislação brasileira as resoluções contidas no Acordo dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), as proibições legais até então existentes que impediam a concessão de patentes no setor químico farmacêutico foram revogadas, abrindo caminho para as empresas atuantes neste setor e possibilitando a concessão de patentes relacionadas aos produtos e processos farmacêuticos no país.
Contudo, apesar das revogações que possibilitaram a concessão de patentes no setor químico farmacêutico, o processo para a concessão de patentes neste setor tramita da forma diversa ao convencional , pois, para a concessão destas patentes, é necessária a obtenção de prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) conforme dispõe o Art. 229-C (*2) da LPI.
Nota-se que o legislador optou por adotar um procedimento mais criterioso de análise destas patentes, justamente pela relação direta destes produtos com a saúde dos consumidores, dando a agência o poder de assegurar que os medicamentos apresentem garantia de segurança, eficácia e qualidade.
Sendo assim, a atuação da ANVISA na concessão das patentes químico-farmacêuticas vai além da verificação dos requisitos de patenteabilidade de tais produtos, pois a agência desempenha o papel de observar os aspectos relevantes à saúde pública, visando o cumprimento da política nacional de acesso ao medicamento (*3).
Dito isto, nos últimos anos a ANVISA iniciou processo de regulamentação para a deliberação da Cannabis (*4) para fins medicinais, que consiste na análise de requisitos técnicos e administrativos para o cultivo deste vegetal na produção de medicamentos, para o uso em pesquisas científicas e também para a regularização dos produtos farmacêuticos feitos a partir da exploração Cannabis no país.
Atualmente o plantio, cultura, colheita e exploração da Cannabis é proibido e constitui crime de tráfico de drogas nos termos da Lei 11.343/06, desta forma, qualquer atividade que envolva o vegetal deve ser antecedida de licença prévia da autoridade competente.
Contudo, desde 2017 os debates acerca do assunto têm sido intensificados, a ANVISA já havia alterado a categoria da Cannabis para uma planta com possibilidade de uso medicinal elencando o vegetal, novamente, para o rol de substâncias terapêuticas em razão dos diversos os estudos que atestam resultados positivos à saúde, especificamente, para o tratamento de enfermidades como epilepsia e esclerose múltipla.
O próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem adotado um posicionamento garantindo aos enfermos acesso a medicação à base substâncias derivadas da Cannabis, sempre que comprovado que o paciente necessita desta medicação para seu tratamento. Nestes termos cabe destacar trecho do voto proferido em 17.12.2018 no Agravo de Instrumento 2222365-06.2018.8.26.0000 de Relatoria da Exma. Desa. Heloísa Martins Mimessi do 05ª Câmara de Direito Público:
“Ademais, no caso em discussão, a ausência de registro do medicamento na ANVISA deve ser relevada, a fim de se preservar a integridade física e psíquica do impetrante, uma vez demonstrada a necessidade de seu uso por ser o medicamento mais eficaz para inibir ou amenizar os efeitos causados pela patologia que o comete. Não bastasse, a substância em questão deixou de ser proibida e passou a ser controlada pela ANVISA a partir do ano 2015, que instituiu processo simplificado de importação de medicamentos à base de Canabidiol, nos termos da RDC nº 17/2015.”
Destaca-se que a regulamentação deste setor interessa não somente aos pacientes que necessitam do uso de medicamentos elaborados à partir do cultivo da Cannabis, mas também as empresas que atuam no setor de pesquisa & desenvolvimento destes compostos químicos, pois sinaliza de forma positiva ao setor.
Diante deste cenário em 03.12.2019 a Diretoria Colegiada da ANVISA aprovou um novo regulamento para produtos derivados de Cannabis. O texto elenca os requisitos necessários para a regularização desses produtos no país, estabelecendo parâmetros de qualidade e passará a viger 90 dias após a sua publicação no Diário Oficial da União.
Em seu voto, o Diretor da ANVISA Sr. Fernando Mendes Garcia Neto, alegou dificuldade de se regulamentar o setor, conforme se observa abaixo:
“Por fim, não é simples entender os problemas sociais, científicos, clínicos e regulatórios que surgem quando se considera a disponibilização de produtos de Cannabis para fins medicinais. Entretanto, esta douta colegiada busca sempre se modernizar, criar mecanismos e estratégias inovadoras para favorecer a regulação, possibilitando uma atuação mais dinâmica, aproximando o sistema regulatório da realidade do acesso universal aos bens de saúde com qualidade.
Assim, mantendo o entendimento de que os produtos de Cannabis para fins medicinais podem ser regulamentados e autorizados em condições especiais que favoreçam o acesso a pacientes portadores de condições terapêuticas refratárias, divirjo do voto condutor da proposta de RDC incialmente apresentada, proponho regulação substitutiva – anexa a este voto e conhecida dos membros desta DICOL, e VOTO pela aprovação da proposta de RDC aqui relatada em substituição completa àquela proposta pelo Diretor Relator.”
A decisão da Diretoria estabelece que a norma, denominada Resolução da Diretoria Colegiada (RDC), deverá ser revisada em até três anos após sua publicação. Desta forma as empresas não precisarão abandonar as suas estratégias de pesquisa para comprovação de eficácia e segurança de seus produtos, uma vez que as propostas para os produtos derivados de Cannabis se assemelham às mesmas estratégias terapêuticas de um medicamento.
Importante destacar que o marco regulatório criou uma nova categoria de produtos sujeito à vigilância sanitária: os produtos à base de Cannabis.
A RDC aprovada dispõe sobre os procedimentos para a concessão de uma Autorização Sanitária para a fabricação e a importação desses produtos, bem como estabelece requisitos para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais.
O regulamento aprovado exige, para fins de fabricação e comercialização, além da autorização de funcionamento específica, o Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF) emitido pela ANVISA. A empresa requisitante obriga-se a ter um conjunto de dados e informações técnicas, em versão sempre atualizada, que comprovem a qualidade, limites de especificação e métodos de controle de qualidade, bem como estudos de estabilidade e relatórios periódicos de avaliação de uso.
Contudo o regulamento veda a manipulação de qualquer produto derivado de Cannabis. A comercialização no país ocorrerá exclusivamente em farmácias e drogarias sem manipulação e apenas mediante prescrição médica.
Com a regulamentação, espera-se que as diversas patentes depositadas no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual e que atualmente estão sobrestadas, voltem a tramitar, garantindo o desenvolvimento de um mercado nacional e o próprio acesso da população à medicação e fomentando as discussões sobre o que atualmente encontra-se sob estado da técnica e o que é patenteável neste segmento.
Os reflexos da RDC também serão observados para os interessados em pleitear o registro de marcas dos produtos derivados de Cannabis, o que até então não era possível em razão do óbice legal existente no inciso III do artigo 124 (*5) e no parágrafo primeiro do artigo 128 da LPI (*6).
Desta feita, com o afastamento do óbice legal existente na LPI, marcas relacionadas ao segmento de medicamentos derivados de Cannabis serão criadas e poderão ser registradas, garantindo distinção dos produtos semelhantes, não sendo mais necessário na descrição dos produtos (nesses casos permitidos pela ANVISA) usar de formas mais genéricas como plantas medicinais devendo o INPI aceitar produtos derivados da Cannabis, proporcionando um sistema de concorrência justo e que fomenta a economia nacional e ainda agrega valor às empresas habilitadas à produção destes medicamentos.
Além disso, a regulamentação possibilitará o desenvolvimento econômico tecnológico do país, pois estima-se, de acordo com o relatório veiculado pela NewFrontierData (*7), que a receita potencial de Cannabis medicinal possui um potencial de atingir um valor de R$ 4,7 bilhões nos primeiros três anos da venda legal dos compostos produzidos à partir da exploração da Cannabis.
Portanto, conclui-se que a regulamentação do uso medicinal da Cannabis será benéfica, não somente para facilitar a distribuição de medicamentos à base do extrato deste vegetal aos pacientes que dependem do uso destes fármacos e que atualmente são submetidos ao um procedimento controlado pela ANVISA que consiste na importação do medicamento, mas também irá fomentar o setor econômico tecnológico do país, proporcionado os meios necessários para a pesquisa e desenvolvimento.
Por fim, produção de novos produtos químico-farmacêuticos a base da Cannabis sem a necessidade de importação destes medicamentos, criando e desenvolvendo um mercado interno do produto e contribuindo para a arrecadação de tributos com a comercialização desta medicação.
Notas:
(*1) Neste caso entende-se por criações todas as patentes, modelos de utilidade, desenhos industriais, marcas, cultivares, inovações tecnológicas, segredos industriais e demais produtos, serviços e métodos protegidos por propriedade industrial.
(*2) Art. 229-C. A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.
(*3) Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998.
(*4) Cannabis é um gênero de angiospermas que inclui três variedades diferentes: Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis ruderalis. A Cannabis tem sido muito utilizada para a fabricação de fibras (cânhamo), para sementes e óleos de sementes, para fins medicinais e como droga psicoativa (maconha, haxixe, skunk).
(*5) Art. 124. Não são registráveis como marca: II – expressão, figura, desenho ou qualquer outro sinal contrário à moral e aos bons costumes ou que ofenda a honra ou imagem de pessoas ou atente contra liberdade de consciência, crença, culto religioso ou idéia e sentimento dignos de respeito e veneração;
(*6) Art. 128. Podem requerer registro de marca as pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou de direito privado. § 1º As pessoas de direito privado só podem requerer registro de marca relativo à atividade que exerçam efetiva e licitamente, de modo direto ou através de empresas que controlem direta ou indiretamente, declarando, no próprio requerimento, esta condição, sob as penas da lei.
(*7) Disponível em <https://newfrontierdata.com/marijuana-insights/cannabis-oportunidade-de-mercado-de-us10-bilhoes-na-america-latina/>. Acesso em 14.11.2019.
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