ARTIGO: Pessimamente acostumados

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Euclydes P. provoca o cidadão carioca: Por que estamos tão conformados com a realidade que temos? Você concorda com ele??

POR Redação SRzd 23/5/2006| 4 min de leitura

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Euclydes P. provoca o cidadão carioca: Por que estamos tão conformados com a realidade que temos? Você concorda com ele??

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É batata. Sempre que provamos, sentimos, descobrimos algo que não nos agrada num primeiro contato, surge algum entendido para dizer que logo logo estaremos acostumados. Passa o tempo e, mesmo que ainda não tenhamos assimilado de todo a novidade, acabamos, por preguiça, leniência ou exaustão, assumindo o costume forçado como fato consumado. E já não nos surpreendemos se o uso do cachimbo entortou a boca a ponto de ter desenhado no rosto uma careta medonha. Estamos acostumados. Até que algum pensamento mais renitente venha nos lembrar que costume não é realidade. Hábito não é obrigação.

Todo um volteio para chegar ao real ponto de partida deste comentário, deste devaneio: o vital inconformismo dos muitos que amam e ainda alimentam a esperança de dias mais decentes , mais honestos, mais humanos, para esta nossa mui leal e heróica, legal e estóica, cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Perfeito laboratório da mistura de influências, cores, gostos e sons, a cidade-síntese de um Brasil sonhado e ainda não realizado é hoje um lugar onde costumes dos mais absurdos e intoleráveis, num mundo que se quer civilizado, acabaram aceitos como parte de uma verdade sem alternativa possível. E nem precisa buscar nas origens, na cultura escravocrata, no eurocentrismo provinciano nem no velho moralismo de gaveta. Basta olhar em volta. Quer ver?

Nos últimos anos o Rio foi se acostumando a ficar preso. Nas centenas de comunidades populares, o isolamento é econômico, social, sanitário. E a lei é baixada no cano de uma arma. Seus moradores só são gente quando trabalham, de preferência discretos e limpinhos, para constituir e manter funcionando o que costumeiramente é chamado de ‘asfaltoâ?. Que também foi sendo transformado em prisão. Primeiro com os muros, logo as grades, em seguida os portões, pagando um pouco mais, automáticos. Mais recentemente as cercas eletrificadas, as guaritas blindadas, a cancela, o segurança armado. E caiu no costume. Assim como já era encarado como normal o fato da cidade ter grandes áreas habitadas absolutamente ignoradas pelo poder público, fora de qualquer planejamento urbano, quanto mais de um projeto urbanístico pensado para o cidadão.

Ao longo do tempo, as favelas passaram a ser vistas como inerentes ao crescimento da cidade. Hoje, estamos acostumados. Da mesma forma a pensar que o sistema público de saúde é inexoravelmente inviável, daí o costume de ter um plano de saúde privado. Quem não pode pagar, não pode e pronto, também se acostuma. Ou morre.

Estamos acostumados a ter uma polícia profundamente corrompida, bestialmente violenta e que despreza qualquer noção de civilidade. Basta ver um desses decrépitos carros da PM passando , seus ocupantes exibindo panças indecentes e canos pelas janelas. Exceções existem, mas a definição já diz, são exceções. Nada mais costumeiro. Tanto quanto acreditar que a política é viciada por natureza e que todos os eleitos, nas mais variadas esferas, só pensam em maneiras de enriquecer seu dinheiro. Afinal, é este o costume.

Se assim é, porque não tem jeito, a lógica é que seja inadmissível também a surpresa com a lama fedorenta que tudo invade e tudo suja.

Mas, sempre tem um “mas”, um “não é nada disso”. Ainda não destruíram o direito de não se acostumar, de não se conformar, de não aceitar e se indignar. De defender, com toda a veemência possível, o que nos resta do inconformismo, que alimenta o direito de não aceitar como costume, como normal, as explosões de violência bárbara, as balas traçantes no céu, a brutalidade no chão, o toque de recolher tácito, o apartheid social, as doenças medievais, a falta de saneamento básico. Estamos muito mal acostumados. Mas podemos mudar.

Euclydes P. é jornalista.

É batata. Sempre que provamos, sentimos, descobrimos algo que não nos agrada num primeiro contato, surge algum entendido para dizer que logo logo estaremos acostumados. Passa o tempo e, mesmo que ainda não tenhamos assimilado de todo a novidade, acabamos, por preguiça, leniência ou exaustão, assumindo o costume forçado como fato consumado. E já não nos surpreendemos se o uso do cachimbo entortou a boca a ponto de ter desenhado no rosto uma careta medonha. Estamos acostumados. Até que algum pensamento mais renitente venha nos lembrar que costume não é realidade. Hábito não é obrigação.

Todo um volteio para chegar ao real ponto de partida deste comentário, deste devaneio: o vital inconformismo dos muitos que amam e ainda alimentam a esperança de dias mais decentes , mais honestos, mais humanos, para esta nossa mui leal e heróica, legal e estóica, cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Perfeito laboratório da mistura de influências, cores, gostos e sons, a cidade-síntese de um Brasil sonhado e ainda não realizado é hoje um lugar onde costumes dos mais absurdos e intoleráveis, num mundo que se quer civilizado, acabaram aceitos como parte de uma verdade sem alternativa possível. E nem precisa buscar nas origens, na cultura escravocrata, no eurocentrismo provinciano nem no velho moralismo de gaveta. Basta olhar em volta. Quer ver?

Nos últimos anos o Rio foi se acostumando a ficar preso. Nas centenas de comunidades populares, o isolamento é econômico, social, sanitário. E a lei é baixada no cano de uma arma. Seus moradores só são gente quando trabalham, de preferência discretos e limpinhos, para constituir e manter funcionando o que costumeiramente é chamado de ‘asfaltoâ?. Que também foi sendo transformado em prisão. Primeiro com os muros, logo as grades, em seguida os portões, pagando um pouco mais, automáticos. Mais recentemente as cercas eletrificadas, as guaritas blindadas, a cancela, o segurança armado. E caiu no costume. Assim como já era encarado como normal o fato da cidade ter grandes áreas habitadas absolutamente ignoradas pelo poder público, fora de qualquer planejamento urbano, quanto mais de um projeto urbanístico pensado para o cidadão.

Ao longo do tempo, as favelas passaram a ser vistas como inerentes ao crescimento da cidade. Hoje, estamos acostumados. Da mesma forma a pensar que o sistema público de saúde é inexoravelmente inviável, daí o costume de ter um plano de saúde privado. Quem não pode pagar, não pode e pronto, também se acostuma. Ou morre.

Estamos acostumados a ter uma polícia profundamente corrompida, bestialmente violenta e que despreza qualquer noção de civilidade. Basta ver um desses decrépitos carros da PM passando , seus ocupantes exibindo panças indecentes e canos pelas janelas. Exceções existem, mas a definição já diz, são exceções. Nada mais costumeiro. Tanto quanto acreditar que a política é viciada por natureza e que todos os eleitos, nas mais variadas esferas, só pensam em maneiras de enriquecer seu dinheiro. Afinal, é este o costume.

Se assim é, porque não tem jeito, a lógica é que seja inadmissível também a surpresa com a lama fedorenta que tudo invade e tudo suja.

Mas, sempre tem um “mas”, um “não é nada disso”. Ainda não destruíram o direito de não se acostumar, de não se conformar, de não aceitar e se indignar. De defender, com toda a veemência possível, o que nos resta do inconformismo, que alimenta o direito de não aceitar como costume, como normal, as explosões de violência bárbara, as balas traçantes no céu, a brutalidade no chão, o toque de recolher tácito, o apartheid social, as doenças medievais, a falta de saneamento básico. Estamos muito mal acostumados. Mas podemos mudar.

Euclydes P. é jornalista.

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