Nos últimos 100 anos, apenas em duas ocasiões a democracia brasileira testemunhou a passagem da faixa presidencial entre eleitos, para um presidente de oposição. Em 1961, Juscelino Kubitscheck (PSD) entronizou Jânio Quadros (UDN). Em 2003, Fernando Henrique Cardoso (PSDB) transferiu o poder para Luís Inácio Lula da Silva (PT). A raridade da transição democrática entre forças políticas opostas – separadas por décadas de ditadura militar, governos interinos e impeachments – atesta a fragilidade da democracia no Brasil.
A notícia da viagem de Jair Bolsonaro para os Estados Unidos na véspera da posse de Lula (rumo ao resort de outro ex-presidente às voltas com a justiça, Donald Trump) confere ao mandatário um apagar de luzes melancólico, capaz de iluminar nossas fragilidades.
Entre JK e Lula, apenas dois presidentes completaram a termo o mandato oriundo das urnas. Quadros renunciou, abrindo uma crise que conduziria a duas décadas de ditadura militar. Tancredo Neves morreu antes de assumir como líder do primeiro governo civil desde 1961. Primeiro presidente eleito democraticamente desde JK, Fernando Collor de Mello sofreu impeachment em 1992 – mesmo destino de Dilma Rousseff, 24 anos depois. Apenas FHC e Lula chegaram ao fim de seus mandatos.
A persistente fragilidade da democracia brasileira veio se somar a pandemia global do novo Coronavírus. Os efeitos da Covid-19 no Brasil superaram os impactos das duas guerras mundiais do século XX. A economia sofreu a mais profunda queda desde o Crash de 1929, que antecipou a Revolução de 1930. Quanto às perdas humanas, cifras sem precedentes – 40 milhões de infectados 700 mil mortos – lançaram a polis numa espiral de ansiedade e frustração. A pandemia chegou até nós como um evento suprapolítico, diante do qual todo o espectro ideológico se mostrou despreparado. A seguir, a Covid-19 se mostraria o evento político decisivo da terceira década do século XXI.
Ao colocar a sociedade brasileira num limbo entre 2020 e 2022, a pandemia instaurou um clima de campanha eleitoral permanente. A Covid-19 colocou contra a parede o governo da extrema-direita. O mandato de Bolsonaro foi abreviado por uma série de revezes políticos motivados pelo combate ao vírus. A abrupta recessão levou o governo a furar o teto de gastos – pondo o futuro da gestão nas mãos do Centrão. O contracionista Paulo Guedes conduziu o maior programa de transferência de renda da história do Brasil (inflado por pressão legislativa). A Covid-19 empurrou um governo negacionista a investir na produção e compra de vacinas, após o Supremo Tribunal Federal autorizar os entes federados a desobedecer o Planalto.
Além de quebrar a espinha dorsal de Bolsonaro, a pandemia ressuscitou o PT, após efeitos colaterais do Mensalão e Petrolão terem alimentado a derrubada de Rousseff e colhido derrotas retumbantes nas urnas em 2016, 2018 e 2020. Com o aval do STF, Lula teve seus direitos políticos restituídos, à medida que a nostalgia imperava numa polis pandêmica. A Covid-19 forneceu bandeiras para a esquerda (mortes equivalentes a um genocídio, a ausência de vacinas, a carestia) que impulsionaram Lula. A desagregação da base de apoio de Bolsonaro foi acompanhada por uma tímida aproximação entre forças oposicionistas, culminando no segundo turno da eleição presidencial de 2022.
Nesse sentido, a eleição de 2022 não foi uma vitória da democracia, mas um triunfo da pandemia.
O novo Coronavírus forcou o sistema político brasileiro a se alinhar com tendências de saúde global. Inicialmente um dos epicentros da pandemia e com alto índice de mortes, o Brasil conseguiu imunizar 80% da população com múltiplas doses, mesmo que a vacinação tenha se iniciado com atraso. O recrudescimento da Covid-19 na Ásia com novas subvariantes não encerrou o período pandêmico. O futuro do pais guarda marcas da enfermidade, transmitidas entre os governos Bolsonaro e Lula.
O enfraquecimento da democracia brasileira precedeu o período da pandemia e até mesmo a onda de populismos de direita que varreu o globo após a crise global de 2008. Os candidatos derrotados nas ultimas eleições presidenciais não ligaram para parabenizar os vencedores e apascentar o eleitorado. Nas redes sociais e nas ruas, a polarização se alimentou de palavras de ódio, discriminação e atos de violência que marcaram o período 2013-2022, incluindo assassinatos políticos e ameaças terroristas.
O Brasil – desde há muito uma das sociedades mais violentas do globo – havia preservado a Nova República da violência política característica das ditaduras que a antecederam. Não mais dispondo desse privilegio, cabe às autoridades eleitas ou reeleitas em 2022 a pacificação da polis, promessa feita há 40 anos no período da redemocratização e reiterada em 2016, no efêmero governo Michel Temer (que terminou com uma intervenção militar na cidade do Rio).
Desse modo, as autoridades que assumirão as rédeas do pais em 2023 começam sua tarefa com olhos voltados para trás. Novos nomes ou velhos conhecidos terão diante de si uma sociedade exaurida e ansiosa por realizações, separada pela polarização, além de um sistema político fragilizado. Um pais desalinhado num sistema global turbulento, mesclando pandemia, guerra e competição econômica.
A reconstrução da Nova República não tem como se evadir das cicatrizes da Covid-19. Na terra arrasada da polarização, narrativas autárquicas e autoritárias proliferam sob o manto da democracia. Não há outro espaço, tampouco outro tempo, à nossa disposição. Para superar a pandemia, será necessário derrubar barreiras que construímos entre nos. A seguir, as erguidas entre nós e o mundo.
A tarefa possível da democracia em curso passa pela superação do que impede a coexistência digna, nas circunstâncias do espaço e do tempo presentes. Se as instituições podem (e devem) desarmar terroristas e desordeiros para o cumprimento das leis, desarmar palavras e intenções permanecerá um desafio para a sociedade civil brasileira – o seu mais significativo desafio desde o ano de 2013.