O julgamento dos atos golpistas e o futuro da democracia brasileira, por Carlos Frederico

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Em meados de setembro, o Supremo Tribunal Federal iniciou os julgamentos dos réus participantes dos atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023 – que culminaram com a destruição de prédios públicos sedes dos poderes da República. A farta cobertura da mídia foi condizente com a importância desse evento – que representou o ato final da conturbada eleição […]

POR Carlos Frederico Pereira da Silva Gama22/09/2023|6 min de leitura

O julgamento dos atos golpistas e o futuro da democracia brasileira, por Carlos Frederico

Atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Foto: Joedson Alves/Agência Brasil

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Em meados de setembro, o Supremo Tribunal Federal iniciou os julgamentos dos réus participantes dos atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023 – que culminaram com a destruição de prédios públicos sedes dos poderes da República. A farta cobertura da mídia foi condizente com a importância desse evento – que representou o ato final da conturbada eleição presidencial de 2022. Pelo respeito às urnas e pela punição àqueles que atentam contra a vontade popular, a democracia respira aliviada.

Os holofotes colocados sob o STF trazem à tona uma transformação de longo prazo na jovem pólis brasileira. Entre 2012 e 2023, os tribunais se tornaram o centro das disputas políticas no Brasil. A partir do julgamento do Mensalão, o destino dos eleitos nas urnas mudou decisivamente de direção.

Depois do choque inicial da Redemocratização (período compreendido entre a Lei de Anistia, as Diretas-Já e a vitória de Tancredo Neves e José Sarney no último Colégio Eleitoral da ditadura), o novo sistema partidário brasileiro se insulou. Esse fechamento das lideranças políticas, sucedendo um ciclo inédito de manifestações populares, trouxe desconforto inesperado para a sociedade civil, embevecida pela Constituição cidadã de 5 de Outubro de 1988.

O novo marco constitucional ampliou os direitos cidadãos e os deveres do estado democrático – sem que ambos tivessem à disposição os meios para concretizar essas expectativas.

A promessa de uma Nova República democrática seria adiada, até o momento em que três tarefas estivessem finalizadas. Em primeiro lugar, estabilizar a economia – perturbada pela hiperinflação, inúmeros planos frustrados e uma década de crescimento medíocre. Em seguida, incluir novas elites políticas num sistema dantes oligárquico e com baixa capacidade de resposta aos anseios populares. Por fim, colocar uma pá de cal no entulho autoritário legado de duas décadas de ditaduras militares.

As forças sociais e os poderes da República se viram atados em ciclos de irrealização – cujos avanços modestos foram retardados pelo caráter inconcluso das transformações na economia e na política. O desgaste prolongado de instituições entrelaçadas demanda colchões de acomodação e respostas provisórias – latitudes herdadas de uma carta democrática pluralista e fragmentária, calcada na premissa da colaboração de poderes. O espírito da Redemocratização aumentou exigências futuras.

Uma espiral de insatisfação se instaurou entre nós, e permanece viva em 2023.

“Cumprir a Constituição” assumiu feições de mediação institucional e solução pragmática de controvérsias – tarefas aceleradas pela insatisfação social pervasiva. Entre 1985 e 2023, essa missão foi transladada dos representantes eleitos democraticamente para as autoridades não-eleitas. Contradições estruturais da Nova República a encaminharam para uma situação análoga à da Constituição Imperial de 1824, que previa um “Poder Moderador” responsável pelo equilíbrio social.

A posição estratégica desfrutada pelo Poder Judiciário desde 2012 é uma resultante de contradições sócio-constitucionais da Nova República, mediante o acúmulo de desgastes e insatisfação. Apesar de magistrados se tornarem figuras públicas, com muitos seguidores, votos e ministérios, tal mudança não foi efeito de ações isoladas do Judiciário, mas sim de ações combinadas de todos os poderes. O protagonismo do Judiciário se consolidou ao longo das cascatas de crises no Brasil – culminando no status de primeiro-ministro informal auferido por Rodrigo Janot (Procuradoria Geral da República) no governo Michel Temer e por Alexandre de Moraes (STF) no ocaso do governo Jair Bolsonaro.

O papel que o Judiciário passou a exercer na pólis brasileira é análogo ao Poder Moderador imperial. Nas coordenadas de uma jovem democracia, os tribunais passaram a fornecer um tipo de proteção institucional específica – qualificada por Samuel Huntington sob a denominação “pretorianismo”. O pretorianismo é um fenômeno comum em sistemas políticos frágeis, onde um grupo social se arrola o papel da “proteção” sistêmica constrangendo a ação dos demais sob uma égide de neutralidade.

Ao sabor dos humores de uma sociedade polarizada e desigual, mediação institucional e solução pragmática de controvérsias foram viabilizadas através de heterodoxia normativa – cujo símbolo mais visível é a finada Operação Lava-Jato.

A ação dos magistrados fora da quadratura constitucional permitiu a mobilização seletiva de instituições para apaziguar disputas e aplacar anseios de grupos de interesse. Sob o mote insuspeito do combate à corrupção, o pretorianismo das normas teve efeito pacificador sobre as expectativas, mas levou dois presidentes ao cárcere e pavimentou um impeachment ao arrepio da legalidade.

Entre o Mensalão e a Insurreição, a pacificação das expectativas frustradas foi obtida em detrimento da participação política dos cidadãos, em sentido contrário aos anseios originais da Nova República.

Frequentes intervenções pacificadoras do Judiciário na pólis reduzem o horizonte da participação cidadã, ao congelar discricionariamente as controvérsias em coordenadas socialmente indefinidas. Por sua vez, os processos políticos ficam prejudicados, operando no ritmo dos tribunais.

Sob a égide constitucional, a escalada de insatisfações se legitimou. Os marcos temporais de 1988 aceleraram os horizontes de ação. O furor das expectativas da população reduziu, paradoxalmente, a resiliência das instituições recém-restauradas. Em ritmo de atropelo, anseios buscaram realização.

Estruturalmente, a Constituição é uma obra em progresso que clama por cumprimento. Quando todas as forças sociais incidem sobre essa tarefa, o resultado é uma pólis obcecada por resultados rápidos, auferidos ao menor custo. Levada a cabo por muitos anos, essa obsessão torna irresistível o pretorianiasmo. O resultado do nosso presente não foi obra do acaso ou de uma pretensão isolada.

A contribuição do Judiciário para a defesa da democracia hodiernamente – e para a defesa da própria população contra uma pandemia, quando o STF autorizou os entes federados a desobedecer o negacionismo de Bolsonaro em 2020 – traz à tona a relevância desse poder para o futuro da República. A importância dos tribunais numa democracia consolidada é por demais conhecida. Ao assumir protagonismo inesperado no curso da Nova República, o Judiciário modificou decisivamente o processo de redemocratização, a ponto de suas contribuições positivas se confundirem com o confinamento de outros poderes, com prejuízo da capacidade de ação que pressupõe a cidadania.

Nesse sentido, o governo Lula – beneficiário direto do julgamento dos atos golpistas – também enfrenta contradições de uma pólis sub judice. A capacidade de ação do governo que prometeu reconstruir a democracia e unificar o país depende da mobilização de amplos setores da sociedade. Limitados pela proeminência das cortes, estado e sociedade civil se veem às voltas com renovada necessidade de aprofundar a democracia e ampliar seus benefícios – duas pautas centrais das manifestações de 2013, que completaram 10 anos como conjunto de reinvindicações incompletas.

O futuro da democracia brasileira, portanto, permanece em aberto, mas sob atenta supervisão.

Em meados de setembro, o Supremo Tribunal Federal iniciou os julgamentos dos réus participantes dos atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023 – que culminaram com a destruição de prédios públicos sedes dos poderes da República. A farta cobertura da mídia foi condizente com a importância desse evento – que representou o ato final da conturbada eleição presidencial de 2022. Pelo respeito às urnas e pela punição àqueles que atentam contra a vontade popular, a democracia respira aliviada.

Os holofotes colocados sob o STF trazem à tona uma transformação de longo prazo na jovem pólis brasileira. Entre 2012 e 2023, os tribunais se tornaram o centro das disputas políticas no Brasil. A partir do julgamento do Mensalão, o destino dos eleitos nas urnas mudou decisivamente de direção.

Depois do choque inicial da Redemocratização (período compreendido entre a Lei de Anistia, as Diretas-Já e a vitória de Tancredo Neves e José Sarney no último Colégio Eleitoral da ditadura), o novo sistema partidário brasileiro se insulou. Esse fechamento das lideranças políticas, sucedendo um ciclo inédito de manifestações populares, trouxe desconforto inesperado para a sociedade civil, embevecida pela Constituição cidadã de 5 de Outubro de 1988.

O novo marco constitucional ampliou os direitos cidadãos e os deveres do estado democrático – sem que ambos tivessem à disposição os meios para concretizar essas expectativas.

A promessa de uma Nova República democrática seria adiada, até o momento em que três tarefas estivessem finalizadas. Em primeiro lugar, estabilizar a economia – perturbada pela hiperinflação, inúmeros planos frustrados e uma década de crescimento medíocre. Em seguida, incluir novas elites políticas num sistema dantes oligárquico e com baixa capacidade de resposta aos anseios populares. Por fim, colocar uma pá de cal no entulho autoritário legado de duas décadas de ditaduras militares.

As forças sociais e os poderes da República se viram atados em ciclos de irrealização – cujos avanços modestos foram retardados pelo caráter inconcluso das transformações na economia e na política. O desgaste prolongado de instituições entrelaçadas demanda colchões de acomodação e respostas provisórias – latitudes herdadas de uma carta democrática pluralista e fragmentária, calcada na premissa da colaboração de poderes. O espírito da Redemocratização aumentou exigências futuras.

Uma espiral de insatisfação se instaurou entre nós, e permanece viva em 2023.

“Cumprir a Constituição” assumiu feições de mediação institucional e solução pragmática de controvérsias – tarefas aceleradas pela insatisfação social pervasiva. Entre 1985 e 2023, essa missão foi transladada dos representantes eleitos democraticamente para as autoridades não-eleitas. Contradições estruturais da Nova República a encaminharam para uma situação análoga à da Constituição Imperial de 1824, que previa um “Poder Moderador” responsável pelo equilíbrio social.

A posição estratégica desfrutada pelo Poder Judiciário desde 2012 é uma resultante de contradições sócio-constitucionais da Nova República, mediante o acúmulo de desgastes e insatisfação. Apesar de magistrados se tornarem figuras públicas, com muitos seguidores, votos e ministérios, tal mudança não foi efeito de ações isoladas do Judiciário, mas sim de ações combinadas de todos os poderes. O protagonismo do Judiciário se consolidou ao longo das cascatas de crises no Brasil – culminando no status de primeiro-ministro informal auferido por Rodrigo Janot (Procuradoria Geral da República) no governo Michel Temer e por Alexandre de Moraes (STF) no ocaso do governo Jair Bolsonaro.

O papel que o Judiciário passou a exercer na pólis brasileira é análogo ao Poder Moderador imperial. Nas coordenadas de uma jovem democracia, os tribunais passaram a fornecer um tipo de proteção institucional específica – qualificada por Samuel Huntington sob a denominação “pretorianismo”. O pretorianismo é um fenômeno comum em sistemas políticos frágeis, onde um grupo social se arrola o papel da “proteção” sistêmica constrangendo a ação dos demais sob uma égide de neutralidade.

Ao sabor dos humores de uma sociedade polarizada e desigual, mediação institucional e solução pragmática de controvérsias foram viabilizadas através de heterodoxia normativa – cujo símbolo mais visível é a finada Operação Lava-Jato.

A ação dos magistrados fora da quadratura constitucional permitiu a mobilização seletiva de instituições para apaziguar disputas e aplacar anseios de grupos de interesse. Sob o mote insuspeito do combate à corrupção, o pretorianismo das normas teve efeito pacificador sobre as expectativas, mas levou dois presidentes ao cárcere e pavimentou um impeachment ao arrepio da legalidade.

Entre o Mensalão e a Insurreição, a pacificação das expectativas frustradas foi obtida em detrimento da participação política dos cidadãos, em sentido contrário aos anseios originais da Nova República.

Frequentes intervenções pacificadoras do Judiciário na pólis reduzem o horizonte da participação cidadã, ao congelar discricionariamente as controvérsias em coordenadas socialmente indefinidas. Por sua vez, os processos políticos ficam prejudicados, operando no ritmo dos tribunais.

Sob a égide constitucional, a escalada de insatisfações se legitimou. Os marcos temporais de 1988 aceleraram os horizontes de ação. O furor das expectativas da população reduziu, paradoxalmente, a resiliência das instituições recém-restauradas. Em ritmo de atropelo, anseios buscaram realização.

Estruturalmente, a Constituição é uma obra em progresso que clama por cumprimento. Quando todas as forças sociais incidem sobre essa tarefa, o resultado é uma pólis obcecada por resultados rápidos, auferidos ao menor custo. Levada a cabo por muitos anos, essa obsessão torna irresistível o pretorianiasmo. O resultado do nosso presente não foi obra do acaso ou de uma pretensão isolada.

A contribuição do Judiciário para a defesa da democracia hodiernamente – e para a defesa da própria população contra uma pandemia, quando o STF autorizou os entes federados a desobedecer o negacionismo de Bolsonaro em 2020 – traz à tona a relevância desse poder para o futuro da República. A importância dos tribunais numa democracia consolidada é por demais conhecida. Ao assumir protagonismo inesperado no curso da Nova República, o Judiciário modificou decisivamente o processo de redemocratização, a ponto de suas contribuições positivas se confundirem com o confinamento de outros poderes, com prejuízo da capacidade de ação que pressupõe a cidadania.

Nesse sentido, o governo Lula – beneficiário direto do julgamento dos atos golpistas – também enfrenta contradições de uma pólis sub judice. A capacidade de ação do governo que prometeu reconstruir a democracia e unificar o país depende da mobilização de amplos setores da sociedade. Limitados pela proeminência das cortes, estado e sociedade civil se veem às voltas com renovada necessidade de aprofundar a democracia e ampliar seus benefícios – duas pautas centrais das manifestações de 2013, que completaram 10 anos como conjunto de reinvindicações incompletas.

O futuro da democracia brasileira, portanto, permanece em aberto, mas sob atenta supervisão.

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