Foram necessários muitos anos, quase 500 mil brasileiros mortos e uma debacle econômica inédita. Em Maio de 2021, os líderes dos governos mais longevos e bem-sucedidos da Nova República – Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – se reuniram para declarar sua oposição conjunta ao governo de Jair Bolsonaro (sem partido). O cumprimento tímido entre líderes (seguindo os padrões de isolamento instaurados pela pandemia do novo coronavírus) foi um ato simbólico bastante improvável. Adversários diretos nas urnas presidenciais durante 20 anos, PSDB e PT ressaltaram suas diferenças dentro e fora do Planalto. Após 2014, a hostilidade se tornou palpável.
O então candidato derrotado Aécio Neves (PSDB) questionou a lisura da vitória da presidenta Dilma Rousseff (PT). Mesmo que o Tribunal Superior Eleitoral tenha reiterado a legitimidade da vitória de Rousseff, esse não-reconhecimento abriu as portas para uma crise política nacional. No esteio da Operação Lava-Jato, nomes-chave dos governos do PT foram condenados por atos de corrupção. Em seguida, uma recessão econômica prolongada pôs fim ao ciclo de crescimento do Brasil no século 21.
A polêmica sobre as pedaladas fiscais levaria Rousseff a sofrer um longo processo de impeachment, deflagrado pelo PMDB (partido do vice-presidente Michel Temer e do presidente da Câmara Eduardo Cunha) e conduzido por proeminentes figuras do PSDB (como o ex-governador e senador por Minas Gerais Antônio Anastasia). A queda de Rousseff e a subsequente prisão de Lula (por desdobramentos da Lava Jato) coincidiram com o retorno dos tucanos à Esplanada dos Ministérios (por exemplo, durante as turbulentas gestões de José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, no Itamaraty). O breve governo Temer, no entanto, se mostrou incapaz de retomar o crescimento econômico, projetar o país no exterior ou combater a corrupção (o próprio Temer seria levado à prisão após o fim do mandato).
A desilusão do eleitorado brasileiro com meia década de declínio político-econômico desaguou na vitória da antipolítica, com a eleição de Bolsonaro em 2018. Nessa altura, com nomes emergentes do PSDB se associando com a figura do recém-eleito presidente (como o governador de São Paulo, João Dória) e com a estrela da Lava Jato Sergio Moro assumindo a cadeira de ministro da Justiça, uma aproximação dos tucanos restaurados com o PT derrotado parecia carta fora do baralho para 2022.
Em 2021, entretanto, o cenário mudou. Após um primeiro ano de governo claudicante, Bolsonaro foi abalroado pela Covid-19. A pandemia escancarou a desarticulação entre os entes federativos e o fracasso da gestão do Planalto, reiterado numa sequência de efêmeros ministros da Saúde. Isolado internacionalmente por um governo negacionista, o Brasil se tornou um epicentro global da doença, afundou na vala da depressão econômica e iniciou com atraso a imunização da sua população.
Fundamental para pavimentar a queda dos governos do PT, o Judiciário inadvertidamente forneceria meios para um rápido retorno do partido à seara política. Após a saída de Moro do ministério ainda em 2020, a Lava Jato esteve na alça de mira do Supremo Tribunal Federal. Como corolário dessa reavaliação, as acusações que levaram Lula à prisão foram anuladas em Abril de 2021 e seus direitos políticos foram restaurados. O ex-presidente da República, entre 2003 e 2010, retornava aos holofotes. Em seguida, o próprio Moro teve colocadas em suspeição suas ações no curso da década pregressa.
A decisão do mesmo STF em Março de 2020 – que autorizou entes federativos (estados e municípios) a adotar suas próprias medidas de combate à Covid-19 – abalou o negacionismo de Bolsonaro e colocou o Planalto em rota de colisão com governos estaduais, notadamente o de São Paulo. Doria investiu na criação e distribuição de uma vacina brasileira (via Instituto Butantan e com o aporte decisivo de tecnologia chinesa), eventualmente consolidado com o surgimento da Coronavac. Ao fazê-lo, empurrou o PSDB para a oposição e se tornou o primeiro pré-candidato para o pleito de 2022.
Se os tribunais forneceram o prelúdio para a reaproximação entre os partidos que governaram o Brasil entre 1995 e 2016, as urnas de 2020 enviaram sinais de alerta ao meio político. Realizadas no curso da pandemia e ainda na fervura da antipolítica, as eleições municipais mostraram uma redução notável no número de prefeituras para todos os grandes partidos da Nova República. Não apenas PSDB e PT se viram diminuídos, o mesmo efeito ocorreu com o (P)MDB, o DEM e outras legendas tradicionais.
Por outro lado, a pulverização dos governos municipais não favoreceu Bolsonaro, então recém-saído do PSL. A composição de seu ministério – com nomes com pouca ou nenhuma experiência como representantes nos planos municipal e estadual, em contraste com governos anteriores e outras épocas, como os da República Velha – ampliou o fosso de políticas públicas entre Brasília e o resto do país.
A reação do Brasil à pandemia global foi tardia, incompleta, descoordenada e, por fim, trágica. Nunca tantos brasileiros perderam suas vidas em tão pouco tempo, nem mesmo em períodos de conflito armado. Ironicamente, isso ocorreu no mandato de um presidente de origem militar, cujo ministério conta com mais integrantes das Forças Armadas do que alguns dos governos ditatoriais do século 20.
O desprestígio de Bolsonaro, a queda de seu maior apoiador externo (Donald Trump, derrotado por Joe Biden nas eleições nos EUA e humilhado publicamente após a invasão ao Capitólio em Janeiro de 2021) e a vacinação procrastinada forneceram o contexto para a reaproximação entre FHC e Lula.
Os limites da oposição ao Planalto são, porém, tão visíveis quanto os motivos para aproximações.
O PSDB reluta em apoiar alguém que não seja do próprio partido. Dória enfrenta grande resistência e outros pré-candidatos já se afiguram, como o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. Em contraste com o PSDB, o PT de fato apresenta Lula como seu candidato já em pré-campanha. Nomes que se notabilizaram no curso da pandemia – como o governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B) – relutam em lançar sua candidatura ao Planalto por receio de fragmentar a oposição. Outros nomes derrotados em 2018 – como Ciro Gomes (PDT) – ficaram relegados a um curioso limbo político, de uma terceira via inviabilizada pela falta de coesão entre as forças oposicionistas. De repente as forças de oposição a Bolsonaro se viram empoderadas, porém separadas; convivem num dilema de liderança.
Enquanto isso, a sociedade brasileira segue em compasso de espera, alternando espasmos de efêmera “normalidade” (retomada das atividades econômicas presenciais) e picos de infecção e restrição, com hospitais abarrotados, escassez de oxigênio e a disseminação de novas variantes do coronavírus pelo território nacional. O Brasil – que começou o século como um poder emergente – passa a ser visto como um estado com crônica dificuldade para efetuar suas funções básicas durante uma grave crise. A CPI da Covid cristalizou a imagem de um país relegado ao segundo plano, cujas autoridades recorrentemente terceirizam responsabilidades e se limitam à contabilidade dos mortos.
Separados pelo tempo, PSDB e PT possibilitaram ao Brasil 20 anos de crescimento com justiça social e inclusão de novas elites políticas numa Nova República cautelosa e de traços aristocráticos. O país se projetou internacionalmente; inovou ao retirar milhões de pessoas do mapa da fome e também ao universalizar o acesso a medicamentos (como os de combate à Aids). Se tornou grande destino de investimento externo, organizador de megaeventos globais e promotor de solidariedade para além de fronteiras. Por algum tempo, foi o Brasil um país de futuro.
Sem coordenação de políticas públicas em diferentes níveis de organização social, sem protocolos de coexistência normativa entre seus integrantes, sem projetar uma visão de futuro pós-pandêmico inclusivo, democrático, próspero e justo, as oposições no Brasil se contentam em dizer: ele não.
Os partidos de oposição a Bolsonaro têm longas contribuições para a causa democrática. Têm nomes e capacidades para empreender juntos a travessia do período da pandemia. O próximo passo requer humildade, paciência e o apoio da sociedade já desiludida, partida e exaurida. Não há tempo a perder.
*Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é Professor Associado de Relações Internacionais, Universidade Federal do Tocantins (UFT)
Foram necessários muitos anos, quase 500 mil brasileiros mortos e uma debacle econômica inédita. Em Maio de 2021, os líderes dos governos mais longevos e bem-sucedidos da Nova República – Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – se reuniram para declarar sua oposição conjunta ao governo de Jair Bolsonaro (sem partido). O cumprimento tímido entre líderes (seguindo os padrões de isolamento instaurados pela pandemia do novo coronavírus) foi um ato simbólico bastante improvável. Adversários diretos nas urnas presidenciais durante 20 anos, PSDB e PT ressaltaram suas diferenças dentro e fora do Planalto. Após 2014, a hostilidade se tornou palpável.
O então candidato derrotado Aécio Neves (PSDB) questionou a lisura da vitória da presidenta Dilma Rousseff (PT). Mesmo que o Tribunal Superior Eleitoral tenha reiterado a legitimidade da vitória de Rousseff, esse não-reconhecimento abriu as portas para uma crise política nacional. No esteio da Operação Lava-Jato, nomes-chave dos governos do PT foram condenados por atos de corrupção. Em seguida, uma recessão econômica prolongada pôs fim ao ciclo de crescimento do Brasil no século 21.
A polêmica sobre as pedaladas fiscais levaria Rousseff a sofrer um longo processo de impeachment, deflagrado pelo PMDB (partido do vice-presidente Michel Temer e do presidente da Câmara Eduardo Cunha) e conduzido por proeminentes figuras do PSDB (como o ex-governador e senador por Minas Gerais Antônio Anastasia). A queda de Rousseff e a subsequente prisão de Lula (por desdobramentos da Lava Jato) coincidiram com o retorno dos tucanos à Esplanada dos Ministérios (por exemplo, durante as turbulentas gestões de José Serra e Aloysio Nunes Ferreira, no Itamaraty). O breve governo Temer, no entanto, se mostrou incapaz de retomar o crescimento econômico, projetar o país no exterior ou combater a corrupção (o próprio Temer seria levado à prisão após o fim do mandato).
A desilusão do eleitorado brasileiro com meia década de declínio político-econômico desaguou na vitória da antipolítica, com a eleição de Bolsonaro em 2018. Nessa altura, com nomes emergentes do PSDB se associando com a figura do recém-eleito presidente (como o governador de São Paulo, João Dória) e com a estrela da Lava Jato Sergio Moro assumindo a cadeira de ministro da Justiça, uma aproximação dos tucanos restaurados com o PT derrotado parecia carta fora do baralho para 2022.
Em 2021, entretanto, o cenário mudou. Após um primeiro ano de governo claudicante, Bolsonaro foi abalroado pela Covid-19. A pandemia escancarou a desarticulação entre os entes federativos e o fracasso da gestão do Planalto, reiterado numa sequência de efêmeros ministros da Saúde. Isolado internacionalmente por um governo negacionista, o Brasil se tornou um epicentro global da doença, afundou na vala da depressão econômica e iniciou com atraso a imunização da sua população.
Fundamental para pavimentar a queda dos governos do PT, o Judiciário inadvertidamente forneceria meios para um rápido retorno do partido à seara política. Após a saída de Moro do ministério ainda em 2020, a Lava Jato esteve na alça de mira do Supremo Tribunal Federal. Como corolário dessa reavaliação, as acusações que levaram Lula à prisão foram anuladas em Abril de 2021 e seus direitos políticos foram restaurados. O ex-presidente da República, entre 2003 e 2010, retornava aos holofotes. Em seguida, o próprio Moro teve colocadas em suspeição suas ações no curso da década pregressa.
A decisão do mesmo STF em Março de 2020 – que autorizou entes federativos (estados e municípios) a adotar suas próprias medidas de combate à Covid-19 – abalou o negacionismo de Bolsonaro e colocou o Planalto em rota de colisão com governos estaduais, notadamente o de São Paulo. Doria investiu na criação e distribuição de uma vacina brasileira (via Instituto Butantan e com o aporte decisivo de tecnologia chinesa), eventualmente consolidado com o surgimento da Coronavac. Ao fazê-lo, empurrou o PSDB para a oposição e se tornou o primeiro pré-candidato para o pleito de 2022.
Se os tribunais forneceram o prelúdio para a reaproximação entre os partidos que governaram o Brasil entre 1995 e 2016, as urnas de 2020 enviaram sinais de alerta ao meio político. Realizadas no curso da pandemia e ainda na fervura da antipolítica, as eleições municipais mostraram uma redução notável no número de prefeituras para todos os grandes partidos da Nova República. Não apenas PSDB e PT se viram diminuídos, o mesmo efeito ocorreu com o (P)MDB, o DEM e outras legendas tradicionais.
Por outro lado, a pulverização dos governos municipais não favoreceu Bolsonaro, então recém-saído do PSL. A composição de seu ministério – com nomes com pouca ou nenhuma experiência como representantes nos planos municipal e estadual, em contraste com governos anteriores e outras épocas, como os da República Velha – ampliou o fosso de políticas públicas entre Brasília e o resto do país.
A reação do Brasil à pandemia global foi tardia, incompleta, descoordenada e, por fim, trágica. Nunca tantos brasileiros perderam suas vidas em tão pouco tempo, nem mesmo em períodos de conflito armado. Ironicamente, isso ocorreu no mandato de um presidente de origem militar, cujo ministério conta com mais integrantes das Forças Armadas do que alguns dos governos ditatoriais do século 20.
O desprestígio de Bolsonaro, a queda de seu maior apoiador externo (Donald Trump, derrotado por Joe Biden nas eleições nos EUA e humilhado publicamente após a invasão ao Capitólio em Janeiro de 2021) e a vacinação procrastinada forneceram o contexto para a reaproximação entre FHC e Lula.
Os limites da oposição ao Planalto são, porém, tão visíveis quanto os motivos para aproximações.
O PSDB reluta em apoiar alguém que não seja do próprio partido. Dória enfrenta grande resistência e outros pré-candidatos já se afiguram, como o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. Em contraste com o PSDB, o PT de fato apresenta Lula como seu candidato já em pré-campanha. Nomes que se notabilizaram no curso da pandemia – como o governador do Maranhão, Flávio Dino (PC do B) – relutam em lançar sua candidatura ao Planalto por receio de fragmentar a oposição. Outros nomes derrotados em 2018 – como Ciro Gomes (PDT) – ficaram relegados a um curioso limbo político, de uma terceira via inviabilizada pela falta de coesão entre as forças oposicionistas. De repente as forças de oposição a Bolsonaro se viram empoderadas, porém separadas; convivem num dilema de liderança.
Enquanto isso, a sociedade brasileira segue em compasso de espera, alternando espasmos de efêmera “normalidade” (retomada das atividades econômicas presenciais) e picos de infecção e restrição, com hospitais abarrotados, escassez de oxigênio e a disseminação de novas variantes do coronavírus pelo território nacional. O Brasil – que começou o século como um poder emergente – passa a ser visto como um estado com crônica dificuldade para efetuar suas funções básicas durante uma grave crise. A CPI da Covid cristalizou a imagem de um país relegado ao segundo plano, cujas autoridades recorrentemente terceirizam responsabilidades e se limitam à contabilidade dos mortos.
Separados pelo tempo, PSDB e PT possibilitaram ao Brasil 20 anos de crescimento com justiça social e inclusão de novas elites políticas numa Nova República cautelosa e de traços aristocráticos. O país se projetou internacionalmente; inovou ao retirar milhões de pessoas do mapa da fome e também ao universalizar o acesso a medicamentos (como os de combate à Aids). Se tornou grande destino de investimento externo, organizador de megaeventos globais e promotor de solidariedade para além de fronteiras. Por algum tempo, foi o Brasil um país de futuro.
Sem coordenação de políticas públicas em diferentes níveis de organização social, sem protocolos de coexistência normativa entre seus integrantes, sem projetar uma visão de futuro pós-pandêmico inclusivo, democrático, próspero e justo, as oposições no Brasil se contentam em dizer: ele não.
Os partidos de oposição a Bolsonaro têm longas contribuições para a causa democrática. Têm nomes e capacidades para empreender juntos a travessia do período da pandemia. O próximo passo requer humildade, paciência e o apoio da sociedade já desiludida, partida e exaurida. Não há tempo a perder.
*Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é Professor Associado de Relações Internacionais, Universidade Federal do Tocantins (UFT)