Zé Bento só podia mesmo ter esse nome.
O tempo passava e Zé Bento, exato meio século de vida, ficava a pensar, a matutar em como transformar o nome em uma forma de defender uma grana, já que, como costumava argumentar com os amigos de bar, a sorte não o tinha bafejado. Desenrolar, como dizia Matilde, um cacho dele que morava na Tijuca, entre o Escondidinho e o Salgueiro, e que ele conhecera numa final de Flamengo e Vasco, no Maracanã.
Mulher com uniforme do time em estádio para ele era mulher tranchã. Deu em cima e se deu bem. Começaram a se encontrar. O tempo passou e, inevitavelmente, veio aquela hora em que o papo entrou na área do trampo e Zé Bento tentou desconversar, ia tirando o time de campo e não queria deixar Matilde completar.
Aí Matilde jogou duro:
“Pra continuar com a nega aqui tem que desenrolar!”
Desenrolar. Bento ficou magoado com a preta, mas entendeu o recado.
Passaram-se domingos e mais domingos e nada de Matilde.
Também, da última vez, ela perguntou se não iam lá e Zé Bento fez que não ouviu. Ela insistiu. E ele, sabendo a que lá ela se referia, nada.
Quando caiu na real, procurou, mas não viu mais Matilde.
Pensou no banco do Campo de Santana em que sentavam, na pedra da gruta da Quinta da Boa Vista em que namoravam, quando o dinheiro dava. E bebeu mais uma, outra e mais outra.
Ao despertar com o burburinho da armação da feira na esquina da Carlos de Vasconcellos, na praça Saens Peña, decidiu. Não parar de beber, porque não tinha espírito fraco, mas ia descolar algum trampo, uma coisa pra fazer, ganhar um troco, e voltar a levar Matilde pra passear no Centro.
Começou a ajudar os feirantes a montar e desmontar barracas, contra um qualquer.
Não demorou semana e Matilde reapareceu. Entrou na feira não. Mandou um menino chamar Zé Bento. E eles combinaram pro domingo: Quinta, Campo de Santana, Lapa e quem sabe …, ela refez o roteiro, velho conhecido dos dois.
Zé Bento nem dormiu direito naquela noite, mesmo tendo carregado caixotes pra chuchu na feira da Rua dos Artistas, na Tijuca. Só pensando no lero que ia mandar pra nega.
Pensou, pensou. Matutou, matutou e eis que teve a iluminação. Aproveitar o ano da Copa e abrir uma igreja em que o grande deus, quer dizer, a grande deusa seria a bola. Isso mesmo: a Bola. Com bê maiúsculo e tudo. Como ele não pensara nisso antes?
Domingo, bem cedo, lá estava ele na esquina da Rua dos Araújos com Conde de Bonfim, esperando Matilde descer.
Quando ela chegou e os dois foram caminhando, ele contou que tinha tido uma idéia a que chamou de fantástica e que se tudo desse certo, na prática, sua vida ia desenrolar geral. Matilde reagiu com um “menos, Bento, porque você não é muito chegado a pegar no batente. Não sei nem como arranjou essa viração aí na feira?! Quando a gente chegar na Quinta você me conta, certo!?”
“Certo. Apressa o passo que quero chegar logo lá.”
“Não vem com correria não, que não quero suar. Suor estraga o perfume.”
Picolé de coco já no meio, Matilde franqueou a palavra ao namorado. “Fala agora, Zé. Desembucha.”
“A idéia é a seguinte: estamos em ano da Copa, certo?”
“Certo.”
“Brasileiro não pode ver uma bola, certo?”
“Mais ou menos certo.”
“Porque mais ou menos certo?”
“Porque o que brasileiro não pode ver, também começa com bê, mas não é bem bola não.”
“Mas como uma igreja da bunda não pegaria bem, seria blasfêmia, o negócio é criar a Igreja da Bola.”
“Você é rifle, é 22 ou o que é então?”
“Sou maluco é por você, mas a igreja tem tudo pra dar certo.”
“Não blasfeme, Bento.”
“Que blasfêmia, Matilde; é lucro certo. E se não der lucro, o prazer está no papo. Eu lhe explico: essa é uma igreja quase sem pecados. Os que existirem serão só cometidos contra a Bola, pois ela será o deus ou deusa da nossa igreja. Por exemplo, gente que fura ou rasga bola de menino ‘ pecado mortal! Este pecador nem deve passar pela porta da nossa igreja, que vai ter um belo altar. E você bem que podia me ajudar a bolá-lo junto com seu amigo da Comissão de Carnaval lá do Salgueiro. E será a primeira igreja com um bar arregado e com pagode animado. A Santíssima Trindade Brasileira: samba, cerveja e futebol. Nossas cores serão azul e amarelo.”
“E como é que essa igreja vai se sustentar?”
“Isso é detalhe, mas eu chego lá. Me ajuda a pensar, afinal você será a primeira dama de lá. Nada de dízimo. A contribuição vai se chamar lance ou então ingresso, porque esse papo de dízimo anda muito batido. Quem tiver mais, paga mais, quem tiver menos, paga menos.”
“E quem não tiver?”
“Aí já é querer demais. Procura outra igreja, porque não vou dar colher de chá.”
“E fiado?”
“Você é louca? Agora foi você que pirou. Fi-a-do, nem pensar.”
“Do jeito que você está falando, essa igreja não vai ter nem pecado.”
“Pecado tem que ter, se não, não é igreja. Mas vai ser um tipo de pecado só. O de furar bola.”
“Sabe, Matilde, o que não pode faltar? Um São Jorge. Gente que é bamba, povo do samba se amarra no Guerreiro. A imagem é que não pode ser grande, pra não competir com a nossa deusa, a Bola. Ela é que vai ficar, toda iluminada, girando, no centro do altar.”
“Falar em São Jorge, chega de Quinta! Vamos pro Centro, pois já estou ficando com fome. E isso aqui vai começar a lotar. Vou dar uma passadinha rápida lá na igreja dele e de lá, você me leva pra almoçar.”
“Acabou de chupar dois picolés, fumar quatro cigarros e já está com fome?”
No trem, o papo fluiu. A Igreja da Bola ganhou vida, foi entrando nos trilhos..
Um telão tinha que ter. Pra mostrar os melhores gols de todos os tempos e não apenas os das copas. Teria a hora da pelada, no final de cada culto. Para isso, a Igreja tinha que ser em um lugar amplo, com campo. Campo mesmo, e não quadra pequena, que tira a graça do jogo.
Ao sair do Nova Capela, Matilde continuou a argüição. Inquérito, para Zé Bento.
“E o pastor dessa igreja, quem vai ser?”
“Ora Matilde, que pergunta. Claro que vai ser o papaizinho aqui. Só que não vou querer que me chamem de pastor; pode ser Técnico Espiritual Bento. Qué que você acha?”
“Técnico Espiritual… Me poupe, Bento. Você vai ser chamado é de pastor. E olhe lá.”
Bento não ligou muito pro desdém de Matilde. E continuou a imaginar detalhes da liturgia da nova igreja em homenagem à Santa Bola.
“A hóstia vai ser com o desenho da redondinha e, se tudo der certo, a gente pode até descolar um patrocínio ou servir de cenário para comercial de cerveja. Já pensou?”
“Pensando bem, eu acho que pode dar certo, pois o povo já gosta de bagunça.”
Ao passarem em frente ao 118 da Ubaldino do Amaral, Matilde perguntou: “Zé Bento, não era aqui que ficava o nosso cafofo?”
“Claro que era, mas agora é uma loja de esportes.”
Caminharam mais até a Praça da Cruz Vermelha, e quando chegavam à Praça da República, viram um motel cujo nome levou os dois a se entreolharem e rirem: Bola Dentro!
Depois do chamego, seguiram viagem em direção ao Campo de Santana, pois Matilde queria ir pegar o 415 (Usina-Leblon) na Central.
Assim que entraram no ônibus e se acomodaram naquele banco alto, onde Matilde fazia questão de sentar, Bento voltou à carga: “vou lhe enganar não, hein, minha preta, você pode até achar que é maluquice minha, mas essa igreja é que vai nos desenrolar.”
O ônibus desceu a Presidente Vargas em direção à Tijuca e quando chegou à altura da Prefeitura, Bento começou a cochilar.
Na Av. Heitor Beltrão, quase Saens Peña, Matilde cutucou Bento, que sonado, perguntou: “já chegamos na igreja?”
E Matilde, retrucou na lata: “Bento, Bento, Bento! Chega de sonho, está na hora de acordar.”