Enredo: ‘Batuque ao Caçador’
Oxóssi, batida de uma flecha só…
Do Orum, Olorum escreveu nas estrelas os segredos do que é essencial. E foi Orunmilá quem os entregou à ventura dos Orixás. Um deles, gravado no arco esticado. No voo da flecha em silêncio. No ofá que aponta o sentido da vida. Para um dia fazer ecoar uma batida única. Na caixa. De guerra. De festa. E se tornar canto ao pé da jurema. Perfume de alecrim. Frescor da alfazema. Confiança no impossível. Afinação pelo inverso nos versos próprios à mata.
Cavaleiro regente dos caprichos da pureza. Cadência e equilíbrio de fauna e flora. Batuta que ouriça ou faz calar o naturalmente belo. Trono e tronco da pulsação no interior de tudo. Rito, grito, apito. De mestre. O passo a passo no ritmo preciso. O disparo sem vacilo. Axoxô com milho, amendoim, coco fatiado e melaço na gamela. Oferenda, toque, licença. Pujança preta iorubana. África, axé e agueré. Olu wó kí rí bode.
Diz um Itan que houve festejo em Ifé. Colheita do Inhame. Olofin-Odudua, o rei, foi surpreendido. Do seu altar, viu um dos pássaros de Eleyes pousar sobre o palácio. Desafiadora obra das feiticeiras Iyami Oxorongá. Sombra, peste, cólera se sucederam. O Obá tratou de convocar os Odés para a ofensiva. Guerreiros e suas flechas. Foram cinquenta de Oxotadotá. Todas sem direção. Depois, as quarenta de Oxotogi. Nenhum acerto. Por fim, Oxotogum e vinte tentativas. Mas as asas da praga seguiram abertas.
Eis que o Ifá sinalizou o real caminho: uma lança apenas. E foi Oxotocanxoxô a desferi-la. Instinto de Orixá protetor que atingiu o peito do animal em cheio. Batismo determinante. Fim do mal. Aquele foi o Oxô aclamado: Oxóssi, o Odé, o caçador de uma flecha só. Ofà ofà bèru já. Alegoria fundamental.
Oxóssi, batida de mitos…
O oráculo o fez fruto do simbólico. Em algumas lendas, nascido da própria feiticeira Iyami Apaoká. Jaqueira sagrada. Noutras, filho de Iemanjá e Oxalá. Irmão de Exu, que abriu sua trajetória. E de Ogum, com sua espada de ferro. De afeto. A ensinar sobre a caça. Odé logo aprendeu. Foi ao ataque, para desagrado da mãe. Enfeitiçado por Ossain, encontrou nova moradia na floresta. Abô, banho em deslumbramento. Fez-se provedor dos alimentos. E mò re lè ko lè. Ossain, soberania das ervas e folhas. Oxóssi-Odé, a mira que não descansa. Passaram a viver juntos. Mas Ogum não se conformava. Trouxe o flecheiro de volta para Iemanjá. Ela o recusou.
Sem conseguir o perdão materno, Oxóssi partiu. Destino traçado. Na arma em desenho de Lua Nova empunhada. Mato adentro, atende por Erinlé. Ou Odé Inlé. Grande caçador de elefantes. Que se apaixonou por Oxum banhada de ouro e mel. Erinlé é, ainda, um rio. Correnteza que beija as águas de Oxum. Amor e rivalidade. Desejo e conflito. Do encontro apaixonado e caudaloso, nasceu Logum Edé. Filho metade matagal, metade cachoeira. Homem e mulher. Guerra e espelho. Saiu aos seus.
Oxóssi. Odé. Também chamado Ibualama. Água profunda. Sabedor dos caprichos do submerso. Senhor da prosperidade na ciranda dos Orixás. Aquele que salta a fronteira do impossível: não crê no frio da morte. Dribla Ikú com valentia em suas andanças. Vitorioso na peleja contra o juízo final até mesmo no proibido. Ao flechar a serpente Oxumarê sem permissão superior, foi atingido por feitiço. Mas escapou da passagem. Como sempre. Concessão de Orunmilá.
Oxóssi, batida de luta…
Seguiu adiante. Certeza no improvável. Alvo. Ação. Abate. Longe de titubeios até mesmo quando o trono foi seu. Sim, Odé é rei africano. Rei do Kêtu. O Alakétu. De alteza concedida por Oxum para salvá-lo de outros caçadores. Coroa legitimada pela supremacia do Orum. Mito adorado pelo povo. Oluaiyè a aréré. Kêtu, região de tradição Iorubá sob a árvore sagrada. Kêtu, entreposto de riqueza e comércio. Kêtu, menina dos olhos da cobiça. De Oyó. De Daomé. Da Europa imperialista. Não tardou para o tempo virar sobre o planalto de solo avermelhado. Batalha. O Kêtu sucumbiu ante as tropas daomeanas invasoras. Portal de entrada conquistado. Saga em desalinho.
O culto a Oxóssi foi atingido pela queda do reino. Em fugas. Em massa. Em mortes. Mas o ícone também se espalhou. Memória oral como frasco aberto. Essência do Candomblé solta no ar. Em velas ao mar que transformaram a experiência de mulheres e homens. Sobrevivente no tumbeiro. Irukerê que afasta os maus espíritos. Eco ancestral sem amarras. Desembarque. No Brasil, em Cuba, na mistura efervescente das Américas. Lamento escravo na senzala. Veias abertas.
Oxóssi, batida de sincretismo…
Com os pés aqui, assentou-se no alastramento. Raiz nova em solo que tudo dá. Dono da terra desbravador. Operador da dimensão do encanto. Nagô. Angola também. Cabila. Mutalambô provisor. Arqueiro divino de Zambi. Criador das estrelas. “Que iluminam Oxóssi lá no Juremá”. Preto. Das giras. Mandinga. Macumba. Umbanda. Nação de nações apinhadas. Dorso de aço. Pé de vento. Divindade que dança. Índio. Linhas de caboclo. “De Aruanda”. Pena branca. Jupiassu. Sete flechas. Boiadeiro. Ventania. Dona Jupiara. Sete Encruzilhadas. Das tabas todas consagradas na sua energia.
Orunmilá gravou em Odé a percussão que alforria corpos e almas do Gigante. Ponto riscado. Traje em verde ou azul. Legião de filhos de cabeça feita. Quinta-feira de Ossé. Sincretismo. Salve Jorge na Bahia. O Amado e o Guerreiro. Guardião das noites enluaradas. Casa Branca. Gantois. Ilê Axé Opô Afonjá. A força de Mãe Stella. São Sebastião do Rio de Janeiro. Padroeiro cristão flechado. Falange Tupinambá derrotada. Santo e Orixá. Fusão em dorso nu. Antropofagia simbólica de algozes à beira do cais. Sagrado e profano. Folia.
Oxóssi, batida de festa…
Tribo de quintal sob melodiosa tamarineira. Cacique. De Ramos. Da Uranos. Dos que não cancelam os frutos do tambor. Ubirajara, Ubiracy, Ubirany. Aymoré. No ramal Deodoro, salta em Oswaldo Cruz ou Madureira. Águia e jaqueira sagradas. Apaoká do samba. Tabajara. Paraíso no alto do morro. Arroz-com-couve irmanado ao Boi Vermelho. Como Odé e Ossain em harmonia nos mistérios da mata. Zona Oeste por cartão de identidade.
Agueré depois do apito final na pelada de várzea. Rum, Rumpi, Lé. Ogãs a repercutir a gramática do atabaque. Xirê em torno da sábia Chica. Tia. Mãe. Ifá. De grêmio boleiro a grêmio de terreiro no bairro com nome de padre. Mesa posta por Maria do Siri, receita dos Trindades, toque final de Oliveiras.
Pipa solta que vira estrela de cinco pontas. Herança dos enigmas que Olorum salpicou no céu. Vivinho. André. Macumba. A primeira, a segunda, a terceira. Lavadeira, Galo Velho, Miquimba. Instrumentos calados. Mergulho no abismo. Paradinha. Para o renascer cadenciado no tempo certo. Cuidado feminino no chocalho de platinela, ronco da cuíca de Quirino, mão preta que vibra o couro em sintonia com o peito. A caixa. A síncope. A raiz. Flecha certeira que conduz de volta ao começo e gira a roda da existência. Pioneira.
Guilherme, Coronel Tamarindo, Vintém. Avenida. Brasil, do carnaval, do sonho. Ponto Chic. Faro em movimento. Trem partindo da estação. Caçada batuqueira que desce até o Centro. Para a glória e vitória do axé. “Tupi, cacique, poder geral”. Bira, Jorjão, Coé. Dudu.
Tesouro, aglomeração e abraço sem medo de toda uma gente.
Odé é coisa nossa. Não existe mais quente.
Oxóssi é a bateria da Mocidade Independente.
Okè arò, okè.
Enredo dedicado aos ritmistas de ontem, de hoje e de sempre que compõem a alma de nossa escola…
Carnavalesco e criação: Fábio Ricardo
Sinopse e ideia original: Fábio Fabato
Pesquisa e defesa de enredo: André Luis Junior