A Dama de Oncinha e o Freak Show da TV

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Abordada por telefone, a entrevistada estava cheia de exigências: “Quero o currículo de quem vai me entrevistar”. Não que se tratasse de uma celebridade; bem, pelo menos, no sentido que a palavra tem hoje…

POR Redação SRzd31/08/2006|8 min de leitura

A Dama de Oncinha e o Freak Show da TV
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Eu me preparei para uma entrevista rápida. Entre quinze e vinte minutos. Abordada por telefone, a entrevistada estava cheia de exigências: “Quero o currículo de quem vai me entrevistar”. Não que se tratasse de uma celebridade; bem, pelo menos, no sentido que a palavra tem hoje.

Ela é famosa, tipo: quando morrer vai sair em todos os jornais, mas não é uma pessoa procurada por quem faz notícia, e nem aquela pessoa “hypada”, que o promoter convida para as festas para dar um tom descolado. Mas ela tem um detalhe que marca qualquer ambiente: autoconfiança.

Elza é seu nome. Ela surge no estúdio com uma pele de onça enrolada no pescoço. As pernas, musculosas, por baixo da meia arrastão preta, dois tons a mais que sua própria pele. A idade? Talvez 60, ou mesmo 70… Ela era o que qualquer um chamaria de coroa enxuta. “Coroa enxuta é o cacete!”, ela diria se me visse escrevendo. Me lembra outra coroa, que não era enxuta, mas era uma das figuras mais maravilhosas e originais que alguém nessa terra de ninguém poderia conhecer: a Neuma, primeira dama da Mangueira.

A média era de dois palavrões por frase, sentenças curtas, o que aumenta consideravelmente a média. Boa parte dos pensamentos permanece impublicável: “Se amarrar todos os pintos que comi nessa vida, vou e volto a Niterói pela ponte” … Exagero! Será? Deixa pra lá…

Até porque pinto é eufemismo. Pois Elza não se fez de rogada, ficou de olho no cinegrafista que era um moreno alto, bonito e meio mané. Ela gostava de Mané, bom de foto e bom tripé. Falamos do passado, do perrengue nas finanças, da vida dura de mulher apaixonada por alcoólatra.

Mas o passado muda no coração da gente. É como diz Gabriel Garcia Márquez: “Coração só tem memória para coisas boas”. Sinto isso com Elza; aos 12 já era mãe, aos 18 anos, viúva. Foi lavadeira e operária de fábrica de sabão. E depois virou estrela; cantou Jobim, cantou Vinicius, cantou Ataulfo Alves e não parou mais de cantar. Elza Soares é uma vida e tanto !

E por que lembro agora de Elza? Porque acho uma tremenda falta de educação jornalística lembrar das pessoas que têm valor apenas quando algo especial, em geral ruim, acontece. Não sei por onde anda Elza. Só me lembro do CD “Carne fresca”, de três anos atrás: deslumbrante!

Lembrar de Elza me fez pensar o quanto a vida nos exige uma longa trajetória, apesar de ela mesma, a vida, ser breve. No primeiro semestre desse ano, dirigi um trabalho com os amigos da TV Globo que faziam a minissérie “JK”. Foram momentos maravilhosos de interpretação, pesquisa e convivência no set de gravações. Ao final, comentei com o Dennis Carvalho que aquela era uma obra especial porque iria além do sucesso (na TV, tudo é momento). Seria um trabalho para ser lembrado daqui a muitos anos. Ali tive a clara percepção de que algo especial havia sido construído. E isso é cada vez mais raro na vida que levamos. Nossa noção de tempo vive atropelando o tempo real. Uma semana passa como um raio.

Acordamos na segunda correndo para dar conta de todos os compromissos e logo já chegamos na sexta com dificuldades de lembrar o que de fato fizemos ao longo da semana. O nosso tempo interior está sendo constantemente ludibriado pela correria externa. É uma sucessão de necessidades cotidianas, muitas vezes embutida por subterfúgios de quem não quer parar para pensar muito na vida. Por isso, amo as entrevistas. Elas iludem o tempo. Eternizam as personagens. E por isso aprendi a respeitá-las. São momentos de inteira dedicação. Nada mais há. Celulares são desligados. Um olhar encontra necessariamente o outro. As pausas e a respiração de quem fala têm de ser respeitadas. Ali, alguém se ergue ou desmorona à sua frente. Quando chegamos na ilha de edição, a pessoa, seu tempo de comunicação e sua forma de expressão precisam ser preservados. Suas pausas precisam encontrar uma forma de se colocar entre significados.

Em alguns documentários e em muitos programas, vemos que a pessoa foi atropelada, quase não é mais quem foi. É um produto concebido à sombra de um tempo que nos exige um padrão. Nossa correria da semana inteira está lá, na entrevista que cortamos como profissionais de jornalismo ou diretores de uma obra audiovisual. E a pessoa que surge, muitas vezes, não é a mesma que conhecemos. E nem é falsa. É uma mistura entre a falsa e a verdadeira. Uma versão mais comunicativa, adaptada ao ritmo do veículo. Muitas vezes, eu mostrei a entrevista cortada ao entrevistado e ele se mostrou surpreso de ver a si próprio tão “clean”, tão certinho, com os tempos certos, com as pausas mínimas, tão… Sei lá. Nem ele sabe, quase não era ele. É óbvio que nossa profissão exige isso.

É impossível deixar uma entrevista inteira, sem cortes precisos; nem o telespectador (ou o leitor) terá qualquer prazer em consumir aquela mensagem. O problema é ter a noção de distinguir entre uma pessoa e outra pessoa. Ter a devida consideração por suas diferenças. E saber que estas diferenças se expressam de formas únicas. Por isso é tão desafiante lidar com pessoas como matéria-prima de uma obra.

Leio por estes dias nos jornais o caso de Dona Nelly, empregada doméstica de 68 anos, de São João de Meriti, cidade da Baixada Fluminense, que foi uma das entrevistadas da novela “Páginas da vida” da TV Globo. Na gravação, Dona Nelly fala que o único momento de prazer que teve foi aos 45 anos, quando fechou os olhos e se recostou num sofá, ouvindo Roberto Carlos, e quando a música terminou percebeu que estava toda molhada. A fala, de menos de um minuto, foi retirada de uma entrevista de uma hora e teve como conseqüência, segundo Dona Nelly revelou no programa da apresentadora Sonia Abrão da RedeTV!, a perda do emprego de 8 anos numa casa de família do bairro de Laranjeiras, zona sul do Rio de Janeiro. E ganhou mais de 50 comunidades no detestável Orkut, daquelas do tipo “Eu odeio Dona Nellyâ?.

“Na hora que o depoimento foi ao ar, foi um choque, meu filho saiu revoltado de casa e minha filha levantou sem dizer nada”.

Ninguém começa uma entrevista dizendo para um repórter (ou diretor) a quem você nunca viu na vida que tem orgasmos quando ouve Roberto Carlos; esse é o tipo de confissão que só se faz depois de ganhar confiança. Primeiro você conhece, depois confia e se a confiança se estabelecer, você se abre. Portanto, essa declaração só deve ter sido dada ao final da entrevista de uma hora.

O problema é que Dona Nelly estava diante de um profissional de entrevista e o mínimo que um profissional de entrevista precisa é se fazer confiar. É daí que vêm as declarações que lhe interessam. A entrevista foi levada para a emissora e, tenho certeza, embora não conheça ninguém que estava envolvido na gravação, que a fala sobre o orgasmo já foi comentada no carro no trajeto de volta como o trecho que seria escolhido.

Dona Nelly foi procurada para dar uma entrevista mas, na verdade, tudo que o que queriam era uma frase, um flash de vida e não uma entrevista. Dona Nelly passou 60 minutos lembrando da infância no Morro da Mangueira, dos 16 filhos, da vida difícil… Mas tudo o que restou foi um orgasmo. Ou nem isso: a lembrança de um orgasmo. Agora, tudo isso pode virar uma questão jurídica. Dona Nelly assinou um documento de cessão de imagem e voz e, portanto, a emissora tinha direito legal de veicular sua entrevista (ops), digo, seu depoimento. Tudo bem. Tudo foi feito de acordo com a lei. Duvido que alguém prove o contrário.

Mas a questão é: se a história é essa, do jeito que foi contada, o que fizeram com Dona Nelly é ou não é uma grande safadeza? Imaginem se eu fizesse isso com a Elza Soares? Ou com a Neuma? Elas não iam me processar porque documento assinado eu também tinha, elas iam era me comer de porrada ! E eu não pisava mais na quadra da Mangueira, Deus me livre! Agora, comentando o texto acima com um amigo diretor de novelas da TV Globo, ele respondeu: “É completamente diferente; no seu caso, tratava-se de uma pessoa pública”. Ah, bom… Então, tá. Permita-me discordar, meu amigo, mas esta não é a diferença ‘ a diferença é que quando fui até minhas entrevistadas estava, de fato, interessado na vida delas e não em arrancar alguma bizarrice para o meu freak show.

Eu me preparei para uma entrevista rápida. Entre quinze e vinte minutos. Abordada por telefone, a entrevistada estava cheia de exigências: “Quero o currículo de quem vai me entrevistar”. Não que se tratasse de uma celebridade; bem, pelo menos, no sentido que a palavra tem hoje.

Ela é famosa, tipo: quando morrer vai sair em todos os jornais, mas não é uma pessoa procurada por quem faz notícia, e nem aquela pessoa “hypada”, que o promoter convida para as festas para dar um tom descolado. Mas ela tem um detalhe que marca qualquer ambiente: autoconfiança.

Elza é seu nome. Ela surge no estúdio com uma pele de onça enrolada no pescoço. As pernas, musculosas, por baixo da meia arrastão preta, dois tons a mais que sua própria pele. A idade? Talvez 60, ou mesmo 70… Ela era o que qualquer um chamaria de coroa enxuta. “Coroa enxuta é o cacete!”, ela diria se me visse escrevendo. Me lembra outra coroa, que não era enxuta, mas era uma das figuras mais maravilhosas e originais que alguém nessa terra de ninguém poderia conhecer: a Neuma, primeira dama da Mangueira.

A média era de dois palavrões por frase, sentenças curtas, o que aumenta consideravelmente a média. Boa parte dos pensamentos permanece impublicável: “Se amarrar todos os pintos que comi nessa vida, vou e volto a Niterói pela ponte” … Exagero! Será? Deixa pra lá…

Até porque pinto é eufemismo. Pois Elza não se fez de rogada, ficou de olho no cinegrafista que era um moreno alto, bonito e meio mané. Ela gostava de Mané, bom de foto e bom tripé. Falamos do passado, do perrengue nas finanças, da vida dura de mulher apaixonada por alcoólatra.

Mas o passado muda no coração da gente. É como diz Gabriel Garcia Márquez: “Coração só tem memória para coisas boas”. Sinto isso com Elza; aos 12 já era mãe, aos 18 anos, viúva. Foi lavadeira e operária de fábrica de sabão. E depois virou estrela; cantou Jobim, cantou Vinicius, cantou Ataulfo Alves e não parou mais de cantar. Elza Soares é uma vida e tanto !

E por que lembro agora de Elza? Porque acho uma tremenda falta de educação jornalística lembrar das pessoas que têm valor apenas quando algo especial, em geral ruim, acontece. Não sei por onde anda Elza. Só me lembro do CD “Carne fresca”, de três anos atrás: deslumbrante!

Lembrar de Elza me fez pensar o quanto a vida nos exige uma longa trajetória, apesar de ela mesma, a vida, ser breve. No primeiro semestre desse ano, dirigi um trabalho com os amigos da TV Globo que faziam a minissérie “JK”. Foram momentos maravilhosos de interpretação, pesquisa e convivência no set de gravações. Ao final, comentei com o Dennis Carvalho que aquela era uma obra especial porque iria além do sucesso (na TV, tudo é momento). Seria um trabalho para ser lembrado daqui a muitos anos. Ali tive a clara percepção de que algo especial havia sido construído. E isso é cada vez mais raro na vida que levamos. Nossa noção de tempo vive atropelando o tempo real. Uma semana passa como um raio.

Acordamos na segunda correndo para dar conta de todos os compromissos e logo já chegamos na sexta com dificuldades de lembrar o que de fato fizemos ao longo da semana. O nosso tempo interior está sendo constantemente ludibriado pela correria externa. É uma sucessão de necessidades cotidianas, muitas vezes embutida por subterfúgios de quem não quer parar para pensar muito na vida. Por isso, amo as entrevistas. Elas iludem o tempo. Eternizam as personagens. E por isso aprendi a respeitá-las. São momentos de inteira dedicação. Nada mais há. Celulares são desligados. Um olhar encontra necessariamente o outro. As pausas e a respiração de quem fala têm de ser respeitadas. Ali, alguém se ergue ou desmorona à sua frente. Quando chegamos na ilha de edição, a pessoa, seu tempo de comunicação e sua forma de expressão precisam ser preservados. Suas pausas precisam encontrar uma forma de se colocar entre significados.

Em alguns documentários e em muitos programas, vemos que a pessoa foi atropelada, quase não é mais quem foi. É um produto concebido à sombra de um tempo que nos exige um padrão. Nossa correria da semana inteira está lá, na entrevista que cortamos como profissionais de jornalismo ou diretores de uma obra audiovisual. E a pessoa que surge, muitas vezes, não é a mesma que conhecemos. E nem é falsa. É uma mistura entre a falsa e a verdadeira. Uma versão mais comunicativa, adaptada ao ritmo do veículo. Muitas vezes, eu mostrei a entrevista cortada ao entrevistado e ele se mostrou surpreso de ver a si próprio tão “clean”, tão certinho, com os tempos certos, com as pausas mínimas, tão… Sei lá. Nem ele sabe, quase não era ele. É óbvio que nossa profissão exige isso.

É impossível deixar uma entrevista inteira, sem cortes precisos; nem o telespectador (ou o leitor) terá qualquer prazer em consumir aquela mensagem. O problema é ter a noção de distinguir entre uma pessoa e outra pessoa. Ter a devida consideração por suas diferenças. E saber que estas diferenças se expressam de formas únicas. Por isso é tão desafiante lidar com pessoas como matéria-prima de uma obra.

Leio por estes dias nos jornais o caso de Dona Nelly, empregada doméstica de 68 anos, de São João de Meriti, cidade da Baixada Fluminense, que foi uma das entrevistadas da novela “Páginas da vida” da TV Globo. Na gravação, Dona Nelly fala que o único momento de prazer que teve foi aos 45 anos, quando fechou os olhos e se recostou num sofá, ouvindo Roberto Carlos, e quando a música terminou percebeu que estava toda molhada. A fala, de menos de um minuto, foi retirada de uma entrevista de uma hora e teve como conseqüência, segundo Dona Nelly revelou no programa da apresentadora Sonia Abrão da RedeTV!, a perda do emprego de 8 anos numa casa de família do bairro de Laranjeiras, zona sul do Rio de Janeiro. E ganhou mais de 50 comunidades no detestável Orkut, daquelas do tipo “Eu odeio Dona Nellyâ?.

“Na hora que o depoimento foi ao ar, foi um choque, meu filho saiu revoltado de casa e minha filha levantou sem dizer nada”.

Ninguém começa uma entrevista dizendo para um repórter (ou diretor) a quem você nunca viu na vida que tem orgasmos quando ouve Roberto Carlos; esse é o tipo de confissão que só se faz depois de ganhar confiança. Primeiro você conhece, depois confia e se a confiança se estabelecer, você se abre. Portanto, essa declaração só deve ter sido dada ao final da entrevista de uma hora.

O problema é que Dona Nelly estava diante de um profissional de entrevista e o mínimo que um profissional de entrevista precisa é se fazer confiar. É daí que vêm as declarações que lhe interessam. A entrevista foi levada para a emissora e, tenho certeza, embora não conheça ninguém que estava envolvido na gravação, que a fala sobre o orgasmo já foi comentada no carro no trajeto de volta como o trecho que seria escolhido.

Dona Nelly foi procurada para dar uma entrevista mas, na verdade, tudo que o que queriam era uma frase, um flash de vida e não uma entrevista. Dona Nelly passou 60 minutos lembrando da infância no Morro da Mangueira, dos 16 filhos, da vida difícil… Mas tudo o que restou foi um orgasmo. Ou nem isso: a lembrança de um orgasmo. Agora, tudo isso pode virar uma questão jurídica. Dona Nelly assinou um documento de cessão de imagem e voz e, portanto, a emissora tinha direito legal de veicular sua entrevista (ops), digo, seu depoimento. Tudo bem. Tudo foi feito de acordo com a lei. Duvido que alguém prove o contrário.

Mas a questão é: se a história é essa, do jeito que foi contada, o que fizeram com Dona Nelly é ou não é uma grande safadeza? Imaginem se eu fizesse isso com a Elza Soares? Ou com a Neuma? Elas não iam me processar porque documento assinado eu também tinha, elas iam era me comer de porrada ! E eu não pisava mais na quadra da Mangueira, Deus me livre! Agora, comentando o texto acima com um amigo diretor de novelas da TV Globo, ele respondeu: “É completamente diferente; no seu caso, tratava-se de uma pessoa pública”. Ah, bom… Então, tá. Permita-me discordar, meu amigo, mas esta não é a diferença ‘ a diferença é que quando fui até minhas entrevistadas estava, de fato, interessado na vida delas e não em arrancar alguma bizarrice para o meu freak show.

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