Por Ana Carolina Garcia, crítica de cinema do SRzd Há nove anos, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (Academy of Motion Picture Arts and Sciences – AMPAS) enfrentou uma enxurrada de críticas negativas após o anúncio de sua lista de indicados ao Oscar 2016, gerando incômodo tanto na comunidade hollywoodiana quanto na […]
POR Ana Carolina Garcia04/02/2025|21 min de leitura
Emilia Pérez: Karla Sofía Gascón é uma das oponentes de Fernanda Torres no Oscar 2025. Foto: Divulgação
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Por Ana Carolina Garcia, crítica de cinema do SRzd
Há nove anos, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (Academy of Motion Picture Arts and Sciences – AMPAS) enfrentou uma enxurrada de críticas negativas após o anúncio de sua lista de indicados ao Oscar 2016, gerando incômodo tanto na comunidade hollywoodiana quanto na opinião pública devido à falta de representatividade, diversidade e inclusão dentre os indicados naquele que, ainda hoje, é chamado de “#OscarSoWhite” (“Oscar tão branco” em tradução literal). Por mais que tenha realizado ajustes em suas regras, mesmo em meio à pandemia de Covid-19, que afetou a indústria do entretenimento de maneira até então inédita, a Academia não tem controle algum sobre os atos de seus nomeados nem às consequências de cada um deles, sendo arrastada para o centro de polêmicas nas quais é chamada à responsabilidade para atender às demandas da sociedade atual. É exatamente isso que tem sido observado nos últimos dias, quando a espanhola Karla Sofía Gascón, a primeira mulher trans a concorrer à estatueta de melhor atriz, passou de uma das favoritas da competição à protagonista de polêmicas em série.
Para melhor compreensão dos acontecimentos que têm causado abalos sísmicos na capital do cinema, é necessário voltar um pouquinho no tempo, a partir do sucesso de “Emilia Pérez” (Emilia Pérez – 2024, França / Bélgica / México / EUA) na última edição do Festival de Cannes, realizada em maio do ano passado, deixando a Croisette com três prêmios na bagagem: o do júri, o de atriz para o elenco (Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz) e o Cannes Soundtrack Award. Naquele momento, a equipe do longa distribuído pela Netflix começava a pavimentar o caminho rumo à temporada de premiações hollywoodiana, tendo o Oscar como objetivo primordial.
Dirigido por Jacques Audiard e inspirado em um capítulo do livro “Écoute”, publicado por Boris Razon em 2018, o longa realizou a campanha de forma a chamar a atenção do público por meio da história de chefe de cartel mexicano que passa pelo processo de redesignação de gênero, tornando-se uma mulher admirada em sua comunidade. Tudo isso com a ajuda da advogada interpretada por Saldaña que, não há como negar, é a verdadeira protagonista do longa, mas foi alçada à condição de coadjuvante para facilitar o desempenho na temporada de prêmios. Sem dúvida alguma, a campanha mais fácil do Oscar 2025. Até a semana passada.
Com um time de publicistas e estrategistas liderado por Lisa Taback, ex-braço direito dos irmãos Hervey e Bob Weinstein nos áureos tempos da Miramax, lembrados por campanhas ostensivas e agressivas para que as produções da empresa, à época subsidiária da The Walt Disney Company, obtivessem resultados oscarizados, o longa francês era considerado uma das apostas mais fortes. O resultado do Globo de Ouro concretizou o favoritismo, sobretudo na categoria de melhor filme internacional do Oscar, que tem o brasileiro “Ainda Estou Aqui” (Ainda Estou Aqui – 2024, Brasil / França) como um dos indicados. Vale lembrar que os dois longas também se enfrentam nas categorias de melhor filme e atriz, pois Fernanda Torres é uma das adversárias de Gascón – as outras três são Demi Moore por “A Substância” (The Substance – 2024, EUA), Cynthia Erivo por “Wicked” (Wicked – 2024, EUA / Japão / Canadá / Islândia / Reino Unido) e Mikey Madison por “Anora” (Anora – 2024, EUA).
Quando a AMPAS divulgou a lista de indicados ao Oscar em 23 de janeiro, a equipe de Taback focou na narrativa da representatividade para garantir à Gascón a tão sonhada estatueta. Paralelamente a isso, as equipes das outras indicadas à melhor atriz mantiveram suas campanhas calcadas na ética e no respeito, inclusive às regras da AMPAS. Contudo, o Brasil entrou no clima de Copa do Mundo ao ver Fernanda Torres entre as finalistas de um time tão seleto. E muitos compatriotas decidiram manifestar seu apoio à Torres, celebrando a indicação da atriz, a segunda brasileira a conseguir tal feito – a primeira foi sua mãe, Fernanda Montenegro, há 26 anos, por “Central do Brasil” (Central do Brasil – 1998, Brasil / França), derrotada por Gwyneth Paltrow em “Shakespeare Apaixonado” (Shakespeare in Love – 1999, Reino Unido / EUA), produção Miramax cuja campanha foi liderada por Taback.
Fernanda Torres em cena de Ainda Estou Aqui. Foto: Divulgação
Surpresa dentre as cinco indicadas, Fernanda Torres foi alçada à fama hollywoodiana, ganhando o merecido espaço na competitiva indústria e chamando a atenção para o filme que conta a história real de Eunice Paiva, viúva do ex-deputado Rubens Paiva, morto por agentes da ditadura em 1971. E quando isso aconteceu, Gascón começou a receber, em suas redes sociais, mensagens de brasileiros engajados em eleger Torres. O problema é que parte dessas mensagens não era em tom amistoso, o que levou Gascón a afirmar em entrevista que, apesar do respeito por Torres, pessoas de sua equipe estavam tentando diminuir a ela e ao seu filme.
De acordo com a Vogue, Gascón, ainda em solo brasileiro para divulgar “Emilia Pérez”, afirmou: “O que eu não aguento é que, em cada notícia minha que sai ou em cada programa que participo, chegue a equipe de redes sociais da Fernanda Torres ou do filme e tome conta de tudo, dizendo: ‘Fernanda Torres é a melhor, você é uma porcaria, Fernanda Torres deveria estar nesse programa, Fernanda Torres merece’”. Mas a situação se agravou, de fato, com a divulgação de entrevista em vídeo, publicada pela Folha de São Paulo, na qual a atriz diz: “O que eu não gosto é que exista uma equipe de redes sociais que trabalha ao redor de todas essas pessoas tentando diminuir o trabalho de outras pessoas, como o meu, ou o do filme, porque isso não leva a lugar nenhum. Há muitas pessoas que trabalham no ambiente de Fernanda Torres que falam mal de mim e de ‘Emilia Pérez’”. Essa fala não foi inventada, pois foi gravada em vídeo. Uma acusação grave que rendeu à Gascón a acusação de violar regras da AMPAS, que precisou se envolver na polêmica e analisar o caso, mas, até a presente data, a Academia acredita que suas regras não foram desrespeitadas.
Pedindo ajuda à Torres, que foi às redes manifestar seu respeito a todas as indicadas e falar sobre como a espanhola a recebeu com respeito em evento nos Estados Unidos, a campanha de Gascón sofria novo golpe: a jornalista canadense, Sarah Hagi, encontrou tuítes, não tão antigos assim, de teor racista, xenófobo e islamofóbico. E essa pode ter sido a pá de cal na candidatura de Karla Sofía Gascón ao Oscar 2025. Talvez, a do próprio filme, pois falas polêmicas e preconceituosas de Jacques Audiard também vieram à tona, inclusive chamando o espanhol de “idioma de países modestos, de países em movimento, de pobres e migrantes” ao justificar sua escolha pela língua espanhola em “Emilia Pérez” em entrevista de 2024.
“Sinto muito, é apenas minha impressão ou há mais muçulmanos na Espanha? Cada vez que vou buscar minha filha na escola, há mais mulheres com os cabelos cobertos e as saias até os calcanhares. No próximo ano, em vez de inglês, teremos que ensinar árabe”, disse Gascón em post no Twitter em 2020, mesmo ano em que fez outra postagem, no mínimo, desrespeitosa sobre o assassinato de George Floyd, americano negro assassinado por policial branco. “Eu realmente acho que muito poucas pessoas se importaram com George Floyd, um bandido viciado em drogas, mas sua morte serviu para demonstrar mais uma vez que há pessoas que ainda consideram os negros como macacos sem direitos e consideram os policiais como assassinos”, postou a atriz, que também teve comentário sobre Adolf Hitler resgatado em suas redes sociais: “Não entendo tanta guerra mundial contra o Hitler, ele simplesmente tinha sua opinião sobre os judeus. E assim o mundo segue”.
Além de postagens de conteúdo extremamente graves sobre temas sensíveis, outro tuíte causou imenso desconforto à equipe do longa, pois mostra o ataque de Gascón à sua colega de elenco, Selena Gomez, em 2022: “É uma rata rica que se faz de pobre coitada sempre que pode e nunca deixará de incomodar o seu ex-noivo e sua esposa”, disse a atriz ao criticar o encontro de Gomez com Hailey Bieber, esposa de Justin Bieber, com quem Gomez se relacionou por alguns anos – Gascón nega que tenha feito tal post.
Zoe Saldaña em cena de Emilia Pérez. Foto: Divulgação
Na última sexta-feira, 31 de janeiro, Karla Sofía Gascón emitiu comunicado à imprensa para se desculpar pelas postagens antigas: “Quero reconhecer a conversa em torno de minhas postagens anteriores nas redes sociais que causaram danos. Como alguém de uma comunidade marginalizada, conheço muito bem esse sofrimento e lamento profundamente aqueles que causei dor. Toda a minha vida lutei por um mundo melhor. Acredito que a luz sempre triunfará sobre as trevas”. Mas o estrago já havia sido feito e, no mesmo dia, com receio de todo o escândalo respingar em sua chance de vitória como melhor atriz coadjuvante, Zoe Saldaña, o novo foco da campanha de “Emilia Pérez”, se manifestou.
“Ainda estou processando tudo o que aconteceu nos últimos dias e estou triste. Isso me deixa muito triste porque não apoio e não tenho nenhuma tolerância com qualquer retórica negativa em relação às pessoas de qualquer grupo. Só posso atestar a experiência que tive com cada indivíduo que fez parte desse filme, e minha experiência e minhas interações com eles foram sobre inclusão e colaboração e equidade racial, cultural e de gênero. Isso só me entristece. Me entristece saber que estamos tendo que enfrentar esse revés agora. Mas estou feliz que todos vocês estejam aqui e que ainda estejam aparecendo para Emilia porque a mensagem que este filme tem é muito poderosa e a mudança que ele pode trazer para comunidades que são marginalizadas dia após dia. É importante. Tudo o que posso atestar é que todos nós que nos unimos para contar esta história, nos unimos por amor, por respeito e curiosidade, e continuaremos a espalhar essa mensagem”, afirmou a atriz, considerada favorita à estatueta de coadjuvante antes do escândalo envolvendo Gascón.
Cenário do Oscar a poucos dias do início da votação
Diante do escândalo envolvendo os nomes de Gascón e Audiard, o desconforto na comunidade hollywoodiana é visível e, de acordo com a imprensa americana, há membros da AMPAS que não mais se sentem à vontade para votar no filme em nenhuma categoria. Caso isso aconteça, a equipe poderá deixar o Dolby Theater de mãos vazias, o que é agravado pelo fato de a produção, por si só, ter conteúdo questionável. Afinal, apresenta os mexicanos de forma extremamente estereotipada, bem como banaliza a redesignação de gênero, representando grande retrocesso à comunidade trans.
No entanto, apesar dos problemas em sua concepção e desenvolvimento, “Emilia Pérez” poderia se beneficiar do fato de a comunidade hollywoodiana, historicamente, se posicionar em questões políticas. No cenário atual de início de segundo mandato do presidente Donald Trump, premiar o longa francês representaria uma resposta da indústria às medidas do governo de Donald Trump contra minorias e imigrantes, algo observado na vitória do original Netflix “Roma” (Roma – 2018, EUA / México), do mexicano Alfonso Cuarón, em 2019. E esse é um ponto também utilizado como uma das bases da campanha.
O que pôde ser observado nos últimos dias é que quanto mais Karla Sofía Gascón tenta se justificar, pior fica sua situação, chegando ao ponto de a AMPAS parar de segui-la no Instagram, o que, para muitos analistas, é considerado uma manifestação discreta da Academia contra tudo o que tem sido exposto pela mídia. Afinal, a própria instituição foi duramente criticada / atacada por Gascón em 2021, quando a Academia realizou uma cerimônia calcada em representatividade, diversidade e inclusão. Na ocasião, a AMPAS consagrou “Nomadland” (Nomadland – 2020, EUA) como melhor filme, bem como Chloé Zhao, a primeira cineasta chinesa a vencer a estatueta de direção. Além disso, as categorias de atores coadjuvantes agraciaram um ator negro, Daniel Kaluuya, e uma atriz coreana, Yuh-jung Youn, a primeira a conquistar tal feito, respectivamente por “Judas e o Messias Negro” (Judas and the Black Messiah – 2021, EUA) e “Minari – Em Busca da Felicidade” (Idem – 2020, EUA).
“Cada vez mais o Oscar parece uma cerimônia de filmes independentes e de protesto, não sabia se estava assistindo a um festival afro-coreano, a uma manifestação do Black Lives Matter ou ao 8M”, disse Gascón em sua conta oficial no X, à época, ainda chamado de Twitter. É importante lembrar que o Black Lives Matter é um movimento de âmbito global que denuncia violência contra negros, enquanto o 8M é um movimento que luta em prol das mulheres, também mundialmente. E esse post chacoalhou ainda mais a AMPAS e a campanha de Gascón e, impossível negar, de “Emilia Pérez” ao Oscar. Afinal, os membros votantes tiveram suas escolhas de 2021 questionadas pela atriz, que ainda chamou a cerimônia de “uma gala feia, feia”.
No início da temporada, Karla Sofía Gascón estava com parte considerável da comunidade hollywoodiana aos seus pés. Agora, precisa lidar com a realidade de costas viradas e tentar encontrar algum meio de ainda se manter na corrida pelo Oscar de melhor atriz de forma igualitária e equilibrada com suas concorrentes. Mas, nesse momento, esse cenário aparenta ser utópico demais para a espanhola que tanto incômodo tem causado à AMPAS e seus membros, que não conseguem dissociar sua imagem pública do filme que leva o nome de sua personagem, uma coadjuvante alçada à condição de protagonista para chamar a atenção do público e de premiações ao redor do globo.
Diante de todo o escândalo, “Emilia Pérez” demonstra sinais de fadiga nos dias que antecedem o início da votação final do Oscar 2025, que será realizada entre os dias 11 e 18 de fevereiro. Ou seja, toda a polêmica estará fresca na mente dos membros com direito a voto. Como votar num filme enaltecido por seu diretor como “hino ao México” sem retratar o país e seu povo apropriadamente? Como dissociar a imagem de Gascón que, mesmo pertencendo a um grupo minoritário que não recebe o respeito que merece enquanto seres humanos, ataca outras minorias? Como premiar uma atriz que, conforme dito acima, ataca minorias no momento em que a AMPAS implementa regras calcadas em representatividade, diversidade e inclusão? Esses são apenas alguns dos questionamentos feitos pela comunidade hollywoodiana.
Com a temporada de premiações avançando, apesar de adiamentos advindos dos incêndios florestais que devastaram parte de Los Angeles em janeiro, o impacto dos escândalos será observado, de fato, na cerimônia do Oscar em 02 de março porque outras premiações estão com seus respectivos processos de votação em andamento, sendo duas delas importantes termômetros para o Oscar: o DGA Awards e o SAG Awards, respectivamente concedidos pelo Sindicato de Diretores dos Estados Unidos (Directors Guild of America – DGA) e pelo Sindicato de Atores dos Estados Unidos (Screen Actors Guild – SAG).
Indicativo da categoria de direção, o DGA Awards encerrará a votação na próxima sexta-feira (07), anunciando os vencedores no sábado (08), mesmo dia em que a cerimônia de entrega do PGA Awards será realizada pelo Sindicato de Produtores dos Estados Unidos (Producers Guild of America – PGA), que finalizou a votação em 30 de janeiro e, mesmo sendo grande termômetro do Oscar de melhor filme, não deverá ser tão influenciado pelo escândalo que tomou as manchetes poucos dias antes do prazo final de envio dos votos. Ao contrário do SAG Awards, cuja votação será encerrada em 21 de fevereiro, e os vencedores anunciados em cerimônia no dia 23. Neste ponto, vale ressaltar que o Critics Choice Awards não será afetado pela polêmica, pois a votação foi findada em 10 de janeiro, uma vez que a cerimônia originalmente aconteceria em 12 de janeiro, sendo adiada por duas vezes devido aos incêndios – o evento está marcado para a próxima sexta-feira e “Emilia Pérez” soma 10 indicações, incluindo as de melhor filme, direção, atriz (Gascón) e atriz coadjuvante (Sandaña).
Considerando o calendário, a equipe de “Emilia Pérez”, que ainda não se pronunciou oficialmente sobre o escândalo, precisa correr contra o tempo para evitar novas polêmicas e ajustar a rota da campanha. Paralelamente a isso, Karla Sofía Gascón concedeu entrevista à CNN en español, no último domingo (02), mas, segundo a imprensa americana, sem o conhecimento prévio da Netflix e da equipe de campanha. “Eu não posso renunciar a uma indicação porque o que eu fiz foi um trabalho, e o que está sendo valorizado é o meu trabalho como atriz. E, também, não posso renunciar a uma indicação porque não cometi nenhum crime, não prejudiquei ninguém, não sou racista, nem sou nada do que todas essas pessoas se encarregaram de tentar fazer os outros acreditarem que eu sou”, afirmou durante a entrevista que durou quase uma hora e abordou, dentre tantas polêmicas, a envolvendo o nome de Selena Gomez: “É claro que [o post] não é meu. Eu nunca disse nada sobre minha colega. Jamais me referiria a ela dessa forma”.
A entrevista à CNN espanhola aconteceu após Gascón recorrer novamente às redes sociais para se desculpar e tentar esclarecer a situação, dizendo: “Reconheço, entre lágrimas, que eles venceram. Conseguiram o que queriam: manchar minha existência com mentiras ou coisas tiradas de contexto. Qualquer um que me conheça sabe que não sou racista (e, para quem se surpreender, uma das pessoas mais importantes da minha vida atualmente, e que mais amo, é muçulmana). Não sou qualquer outra coisa pela qual fui julgada e condenada sem direito a defesa, sem chance de explicar minha verdadeira intenção. Sempre lutei por uma sociedade mais justa, por um mundo de liberdade, paz e amor. Jamais apoiarei guerras, extremismos religiosos ou a opressão de povos e raças”.
Na ocasião, a atriz manteve a narrativa de que alguns posts foram criados para prejudicá-la na corrida pela estatueta dourada: “Criaram publicações como se eu tivesse insultado até minhas próprias colegas. Transformaram coisas que escrevi para enaltecer, em críticas; piadas, em verdades; palavras que, sem contexto, parecem puro ódio. Tudo isso apenas para que eu não ganhe nada e para me destruir. Minha mãe me disse ontem algo muito bonito: ‘Não me importa se você vai ganhar alguma coisa, só quero que você fique bem e que não te machuquem’. Mãe, a vida me colocou aqui para transmitir uma mensagem de esperança e amor a este mundo — e eu vou cumprir essa missão”.
Ao que parece, a narrativa de perseguição de internautas, sobretudo brasileiros, será utilizada pela atriz nesta reta final da corrida. Contudo, se isto for aceito pelos membros da AMPAS, mesmo que mantenham a suposta rejeição à Gascón e “Emilia Pérez”, alardeada por parte da imprensa americana, poderá respingar na campanha de Fernanda Torres e “Ainda Estou Aqui”, que, conforme dito anteriormente, está sendo realizada de forma ética e respeitosa desde os primórdios, pois alguns deles podem acreditar que os brasileiros querem ganhar no grito – e essa narrativa da equipe de Gascón precisa ser enfraquecida completamente e o quanto antes. Por isso, é importante, mais do que nunca, que os fãs atendam ao pedido de Torres e não transformem o Oscar numa luta de uma atriz contra a outra.
Quem se fortalece?
Aparentemente, as polêmicas em torno de Karla Sofía Gascón e Jacques Audiard ocuparão muito espaço na mídia mundial nos próximos dias, enfraquecendo a campanha de “Emilia Pérez” de forma generalizada. Neste contexto, caso os membros da AMPAS não aceitem a narrativa de que os fãs brasileiros ajudaram a derrubar Gascón, exposta por uma jornalista canadense que vasculhou suas redes sociais, “Ainda Estou Aqui” começa a despontar como título forte na categoria de melhor filme internacional.
Dirigido por Walter Salles, cineasta respeitado no exterior, “Ainda Estou Aqui” tem feito uma campanha discreta, mas correta, capitaneada pela Sony, que tem apostado alto no longa e, especialmente, em Fernanda Torres, que é uma candidata forte à estatueta de melhor atriz. Se não fosse, sua equipe não teria se tornado alvo de acusações infundadas por parte de Gascón ainda em terras brasileiras. Contudo, a categoria tem uma favorita absoluta, Demi Moore.
Concorrendo por “A Substância”, Moore também está realizando sua campanha de forma ética e respeitosa, assim como Cynthia Erivo e Mikey Madison, mas, fora do olho do furacão, pode se fortalecer, tendo como benefício o fato de Hollywood adorar histórias de superação. No caso de Demi Moore, a de uma atriz que sempre foi desacreditada pelos próprios colegas em Hollywood e coleciona quatro Framboesas de Ouro (Razzie Awards, concedido aos piores da indústria). É uma trajetória que, de certa forma, remete à de Michael Keaton, que, igualmente desacreditado, aceitou projetos questionáveis durante muitos anos, voltando ao panteão hollywoodiano somente em 2014 sob a direção do mexicano Alejandro Gonzalez Íñarritu em “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” (Birdman or The Unexpected Virtue of Ignorance – 2014, EUA), que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor ator – Keaton era um dos favoritos ao prêmio e tinha a atuação mais impressionante daquele ano, mas perdeu para Eddie Redmayne por “A Teoria de Tudo” (The Theory of Everything – 2014, Reino Unido / Japão / EUA).
Mesmo subestimada ao longo de quase toda sua carreira, Demi Moore é parte da comunidade hollywoodiana e isso, por si só, conta muito na disputa pelo Oscar. Premiar Moore seria premiar a própria Hollywood num desempenho cênico realmente grandioso, o que torna a corrida de Fernanda Torres rumo ao palco do Dolby Theater ainda mais complexa. Afinal, Torres é a única brasileira dentre as cinco finalistas e precisa lidar, dentre tantas coisas, com a barreira idiomática.
No atual cenário, Demi Moore fortalece o favoritismo, tendo Fernanda Torres como ameaça, mas Erivo e Madison não podem ser subestimadas, pois também podem ser beneficiadas pelo escândalo envolvendo Gascón. Neste ponto, é importante lembrar que Moore e Torres venceram um grande termômetro do Oscar, o Globo de Ouro, nas respectivas categorias de melhor atriz em filme de comédia / musical e melhor atriz em filme de drama, que conta mais junto à Academia.
Demi Moore em cena de A Substância. Foto: Divulgação
Obviamente, o cenário pode se modificar nas próximas semanas, mas a situação de Fernanda Torres não poderá ser analisada em sua plenitude devido ao SAG Awards, pois, dentre as cinco finalistas do Oscar de atriz principal, a brasileira é a única que não concorre ao SAG.
De olho na movimentação de bastidores, Netflix, Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e toda a equipe terão de encontrar uma resposta plausível para a pergunta que paira em Hollywood desde a semana passada, inclusive sobre Lisa Taback: “E agora, Emilia Pérez?”.
Sobre Ana Carolina Garcia: Formada em Comunicação Social e pós-graduada em Jornalismo Cultural, Ana Carolina Garcia é autora dos livros “A Fantástica Fábrica de Filmes – Como Hollywood se tornou a capital mundial do cinema” (2011), “Cinema no século XXI – Modelo tradicional na Era do Streaming” (2021) e “100 anos do Império Disney: Da Avenida Kingswell à conquista do universo” (2023). É vice-presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ) desde 2021.
Por Ana Carolina Garcia, crítica de cinema do SRzd
Há nove anos, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (Academy of Motion Picture Arts and Sciences – AMPAS) enfrentou uma enxurrada de críticas negativas após o anúncio de sua lista de indicados ao Oscar 2016, gerando incômodo tanto na comunidade hollywoodiana quanto na opinião pública devido à falta de representatividade, diversidade e inclusão dentre os indicados naquele que, ainda hoje, é chamado de “#OscarSoWhite” (“Oscar tão branco” em tradução literal). Por mais que tenha realizado ajustes em suas regras, mesmo em meio à pandemia de Covid-19, que afetou a indústria do entretenimento de maneira até então inédita, a Academia não tem controle algum sobre os atos de seus nomeados nem às consequências de cada um deles, sendo arrastada para o centro de polêmicas nas quais é chamada à responsabilidade para atender às demandas da sociedade atual. É exatamente isso que tem sido observado nos últimos dias, quando a espanhola Karla Sofía Gascón, a primeira mulher trans a concorrer à estatueta de melhor atriz, passou de uma das favoritas da competição à protagonista de polêmicas em série.
Para melhor compreensão dos acontecimentos que têm causado abalos sísmicos na capital do cinema, é necessário voltar um pouquinho no tempo, a partir do sucesso de “Emilia Pérez” (Emilia Pérez – 2024, França / Bélgica / México / EUA) na última edição do Festival de Cannes, realizada em maio do ano passado, deixando a Croisette com três prêmios na bagagem: o do júri, o de atriz para o elenco (Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz) e o Cannes Soundtrack Award. Naquele momento, a equipe do longa distribuído pela Netflix começava a pavimentar o caminho rumo à temporada de premiações hollywoodiana, tendo o Oscar como objetivo primordial.
Dirigido por Jacques Audiard e inspirado em um capítulo do livro “Écoute”, publicado por Boris Razon em 2018, o longa realizou a campanha de forma a chamar a atenção do público por meio da história de chefe de cartel mexicano que passa pelo processo de redesignação de gênero, tornando-se uma mulher admirada em sua comunidade. Tudo isso com a ajuda da advogada interpretada por Saldaña que, não há como negar, é a verdadeira protagonista do longa, mas foi alçada à condição de coadjuvante para facilitar o desempenho na temporada de prêmios. Sem dúvida alguma, a campanha mais fácil do Oscar 2025. Até a semana passada.
Com um time de publicistas e estrategistas liderado por Lisa Taback, ex-braço direito dos irmãos Hervey e Bob Weinstein nos áureos tempos da Miramax, lembrados por campanhas ostensivas e agressivas para que as produções da empresa, à época subsidiária da The Walt Disney Company, obtivessem resultados oscarizados, o longa francês era considerado uma das apostas mais fortes. O resultado do Globo de Ouro concretizou o favoritismo, sobretudo na categoria de melhor filme internacional do Oscar, que tem o brasileiro “Ainda Estou Aqui” (Ainda Estou Aqui – 2024, Brasil / França) como um dos indicados. Vale lembrar que os dois longas também se enfrentam nas categorias de melhor filme e atriz, pois Fernanda Torres é uma das adversárias de Gascón – as outras três são Demi Moore por “A Substância” (The Substance – 2024, EUA), Cynthia Erivo por “Wicked” (Wicked – 2024, EUA / Japão / Canadá / Islândia / Reino Unido) e Mikey Madison por “Anora” (Anora – 2024, EUA).
Quando a AMPAS divulgou a lista de indicados ao Oscar em 23 de janeiro, a equipe de Taback focou na narrativa da representatividade para garantir à Gascón a tão sonhada estatueta. Paralelamente a isso, as equipes das outras indicadas à melhor atriz mantiveram suas campanhas calcadas na ética e no respeito, inclusive às regras da AMPAS. Contudo, o Brasil entrou no clima de Copa do Mundo ao ver Fernanda Torres entre as finalistas de um time tão seleto. E muitos compatriotas decidiram manifestar seu apoio à Torres, celebrando a indicação da atriz, a segunda brasileira a conseguir tal feito – a primeira foi sua mãe, Fernanda Montenegro, há 26 anos, por “Central do Brasil” (Central do Brasil – 1998, Brasil / França), derrotada por Gwyneth Paltrow em “Shakespeare Apaixonado” (Shakespeare in Love – 1999, Reino Unido / EUA), produção Miramax cuja campanha foi liderada por Taback.
Fernanda Torres em cena de Ainda Estou Aqui. Foto: Divulgação
Surpresa dentre as cinco indicadas, Fernanda Torres foi alçada à fama hollywoodiana, ganhando o merecido espaço na competitiva indústria e chamando a atenção para o filme que conta a história real de Eunice Paiva, viúva do ex-deputado Rubens Paiva, morto por agentes da ditadura em 1971. E quando isso aconteceu, Gascón começou a receber, em suas redes sociais, mensagens de brasileiros engajados em eleger Torres. O problema é que parte dessas mensagens não era em tom amistoso, o que levou Gascón a afirmar em entrevista que, apesar do respeito por Torres, pessoas de sua equipe estavam tentando diminuir a ela e ao seu filme.
De acordo com a Vogue, Gascón, ainda em solo brasileiro para divulgar “Emilia Pérez”, afirmou: “O que eu não aguento é que, em cada notícia minha que sai ou em cada programa que participo, chegue a equipe de redes sociais da Fernanda Torres ou do filme e tome conta de tudo, dizendo: ‘Fernanda Torres é a melhor, você é uma porcaria, Fernanda Torres deveria estar nesse programa, Fernanda Torres merece’”. Mas a situação se agravou, de fato, com a divulgação de entrevista em vídeo, publicada pela Folha de São Paulo, na qual a atriz diz: “O que eu não gosto é que exista uma equipe de redes sociais que trabalha ao redor de todas essas pessoas tentando diminuir o trabalho de outras pessoas, como o meu, ou o do filme, porque isso não leva a lugar nenhum. Há muitas pessoas que trabalham no ambiente de Fernanda Torres que falam mal de mim e de ‘Emilia Pérez’”. Essa fala não foi inventada, pois foi gravada em vídeo. Uma acusação grave que rendeu à Gascón a acusação de violar regras da AMPAS, que precisou se envolver na polêmica e analisar o caso, mas, até a presente data, a Academia acredita que suas regras não foram desrespeitadas.
Pedindo ajuda à Torres, que foi às redes manifestar seu respeito a todas as indicadas e falar sobre como a espanhola a recebeu com respeito em evento nos Estados Unidos, a campanha de Gascón sofria novo golpe: a jornalista canadense, Sarah Hagi, encontrou tuítes, não tão antigos assim, de teor racista, xenófobo e islamofóbico. E essa pode ter sido a pá de cal na candidatura de Karla Sofía Gascón ao Oscar 2025. Talvez, a do próprio filme, pois falas polêmicas e preconceituosas de Jacques Audiard também vieram à tona, inclusive chamando o espanhol de “idioma de países modestos, de países em movimento, de pobres e migrantes” ao justificar sua escolha pela língua espanhola em “Emilia Pérez” em entrevista de 2024.
“Sinto muito, é apenas minha impressão ou há mais muçulmanos na Espanha? Cada vez que vou buscar minha filha na escola, há mais mulheres com os cabelos cobertos e as saias até os calcanhares. No próximo ano, em vez de inglês, teremos que ensinar árabe”, disse Gascón em post no Twitter em 2020, mesmo ano em que fez outra postagem, no mínimo, desrespeitosa sobre o assassinato de George Floyd, americano negro assassinado por policial branco. “Eu realmente acho que muito poucas pessoas se importaram com George Floyd, um bandido viciado em drogas, mas sua morte serviu para demonstrar mais uma vez que há pessoas que ainda consideram os negros como macacos sem direitos e consideram os policiais como assassinos”, postou a atriz, que também teve comentário sobre Adolf Hitler resgatado em suas redes sociais: “Não entendo tanta guerra mundial contra o Hitler, ele simplesmente tinha sua opinião sobre os judeus. E assim o mundo segue”.
Além de postagens de conteúdo extremamente graves sobre temas sensíveis, outro tuíte causou imenso desconforto à equipe do longa, pois mostra o ataque de Gascón à sua colega de elenco, Selena Gomez, em 2022: “É uma rata rica que se faz de pobre coitada sempre que pode e nunca deixará de incomodar o seu ex-noivo e sua esposa”, disse a atriz ao criticar o encontro de Gomez com Hailey Bieber, esposa de Justin Bieber, com quem Gomez se relacionou por alguns anos – Gascón nega que tenha feito tal post.
Zoe Saldaña em cena de Emilia Pérez. Foto: Divulgação
Na última sexta-feira, 31 de janeiro, Karla Sofía Gascón emitiu comunicado à imprensa para se desculpar pelas postagens antigas: “Quero reconhecer a conversa em torno de minhas postagens anteriores nas redes sociais que causaram danos. Como alguém de uma comunidade marginalizada, conheço muito bem esse sofrimento e lamento profundamente aqueles que causei dor. Toda a minha vida lutei por um mundo melhor. Acredito que a luz sempre triunfará sobre as trevas”. Mas o estrago já havia sido feito e, no mesmo dia, com receio de todo o escândalo respingar em sua chance de vitória como melhor atriz coadjuvante, Zoe Saldaña, o novo foco da campanha de “Emilia Pérez”, se manifestou.
“Ainda estou processando tudo o que aconteceu nos últimos dias e estou triste. Isso me deixa muito triste porque não apoio e não tenho nenhuma tolerância com qualquer retórica negativa em relação às pessoas de qualquer grupo. Só posso atestar a experiência que tive com cada indivíduo que fez parte desse filme, e minha experiência e minhas interações com eles foram sobre inclusão e colaboração e equidade racial, cultural e de gênero. Isso só me entristece. Me entristece saber que estamos tendo que enfrentar esse revés agora. Mas estou feliz que todos vocês estejam aqui e que ainda estejam aparecendo para Emilia porque a mensagem que este filme tem é muito poderosa e a mudança que ele pode trazer para comunidades que são marginalizadas dia após dia. É importante. Tudo o que posso atestar é que todos nós que nos unimos para contar esta história, nos unimos por amor, por respeito e curiosidade, e continuaremos a espalhar essa mensagem”, afirmou a atriz, considerada favorita à estatueta de coadjuvante antes do escândalo envolvendo Gascón.
Cenário do Oscar a poucos dias do início da votação
Diante do escândalo envolvendo os nomes de Gascón e Audiard, o desconforto na comunidade hollywoodiana é visível e, de acordo com a imprensa americana, há membros da AMPAS que não mais se sentem à vontade para votar no filme em nenhuma categoria. Caso isso aconteça, a equipe poderá deixar o Dolby Theater de mãos vazias, o que é agravado pelo fato de a produção, por si só, ter conteúdo questionável. Afinal, apresenta os mexicanos de forma extremamente estereotipada, bem como banaliza a redesignação de gênero, representando grande retrocesso à comunidade trans.
No entanto, apesar dos problemas em sua concepção e desenvolvimento, “Emilia Pérez” poderia se beneficiar do fato de a comunidade hollywoodiana, historicamente, se posicionar em questões políticas. No cenário atual de início de segundo mandato do presidente Donald Trump, premiar o longa francês representaria uma resposta da indústria às medidas do governo de Donald Trump contra minorias e imigrantes, algo observado na vitória do original Netflix “Roma” (Roma – 2018, EUA / México), do mexicano Alfonso Cuarón, em 2019. E esse é um ponto também utilizado como uma das bases da campanha.
O que pôde ser observado nos últimos dias é que quanto mais Karla Sofía Gascón tenta se justificar, pior fica sua situação, chegando ao ponto de a AMPAS parar de segui-la no Instagram, o que, para muitos analistas, é considerado uma manifestação discreta da Academia contra tudo o que tem sido exposto pela mídia. Afinal, a própria instituição foi duramente criticada / atacada por Gascón em 2021, quando a Academia realizou uma cerimônia calcada em representatividade, diversidade e inclusão. Na ocasião, a AMPAS consagrou “Nomadland” (Nomadland – 2020, EUA) como melhor filme, bem como Chloé Zhao, a primeira cineasta chinesa a vencer a estatueta de direção. Além disso, as categorias de atores coadjuvantes agraciaram um ator negro, Daniel Kaluuya, e uma atriz coreana, Yuh-jung Youn, a primeira a conquistar tal feito, respectivamente por “Judas e o Messias Negro” (Judas and the Black Messiah – 2021, EUA) e “Minari – Em Busca da Felicidade” (Idem – 2020, EUA).
“Cada vez mais o Oscar parece uma cerimônia de filmes independentes e de protesto, não sabia se estava assistindo a um festival afro-coreano, a uma manifestação do Black Lives Matter ou ao 8M”, disse Gascón em sua conta oficial no X, à época, ainda chamado de Twitter. É importante lembrar que o Black Lives Matter é um movimento de âmbito global que denuncia violência contra negros, enquanto o 8M é um movimento que luta em prol das mulheres, também mundialmente. E esse post chacoalhou ainda mais a AMPAS e a campanha de Gascón e, impossível negar, de “Emilia Pérez” ao Oscar. Afinal, os membros votantes tiveram suas escolhas de 2021 questionadas pela atriz, que ainda chamou a cerimônia de “uma gala feia, feia”.
No início da temporada, Karla Sofía Gascón estava com parte considerável da comunidade hollywoodiana aos seus pés. Agora, precisa lidar com a realidade de costas viradas e tentar encontrar algum meio de ainda se manter na corrida pelo Oscar de melhor atriz de forma igualitária e equilibrada com suas concorrentes. Mas, nesse momento, esse cenário aparenta ser utópico demais para a espanhola que tanto incômodo tem causado à AMPAS e seus membros, que não conseguem dissociar sua imagem pública do filme que leva o nome de sua personagem, uma coadjuvante alçada à condição de protagonista para chamar a atenção do público e de premiações ao redor do globo.
Diante de todo o escândalo, “Emilia Pérez” demonstra sinais de fadiga nos dias que antecedem o início da votação final do Oscar 2025, que será realizada entre os dias 11 e 18 de fevereiro. Ou seja, toda a polêmica estará fresca na mente dos membros com direito a voto. Como votar num filme enaltecido por seu diretor como “hino ao México” sem retratar o país e seu povo apropriadamente? Como dissociar a imagem de Gascón que, mesmo pertencendo a um grupo minoritário que não recebe o respeito que merece enquanto seres humanos, ataca outras minorias? Como premiar uma atriz que, conforme dito acima, ataca minorias no momento em que a AMPAS implementa regras calcadas em representatividade, diversidade e inclusão? Esses são apenas alguns dos questionamentos feitos pela comunidade hollywoodiana.
Com a temporada de premiações avançando, apesar de adiamentos advindos dos incêndios florestais que devastaram parte de Los Angeles em janeiro, o impacto dos escândalos será observado, de fato, na cerimônia do Oscar em 02 de março porque outras premiações estão com seus respectivos processos de votação em andamento, sendo duas delas importantes termômetros para o Oscar: o DGA Awards e o SAG Awards, respectivamente concedidos pelo Sindicato de Diretores dos Estados Unidos (Directors Guild of America – DGA) e pelo Sindicato de Atores dos Estados Unidos (Screen Actors Guild – SAG).
Indicativo da categoria de direção, o DGA Awards encerrará a votação na próxima sexta-feira (07), anunciando os vencedores no sábado (08), mesmo dia em que a cerimônia de entrega do PGA Awards será realizada pelo Sindicato de Produtores dos Estados Unidos (Producers Guild of America – PGA), que finalizou a votação em 30 de janeiro e, mesmo sendo grande termômetro do Oscar de melhor filme, não deverá ser tão influenciado pelo escândalo que tomou as manchetes poucos dias antes do prazo final de envio dos votos. Ao contrário do SAG Awards, cuja votação será encerrada em 21 de fevereiro, e os vencedores anunciados em cerimônia no dia 23. Neste ponto, vale ressaltar que o Critics Choice Awards não será afetado pela polêmica, pois a votação foi findada em 10 de janeiro, uma vez que a cerimônia originalmente aconteceria em 12 de janeiro, sendo adiada por duas vezes devido aos incêndios – o evento está marcado para a próxima sexta-feira e “Emilia Pérez” soma 10 indicações, incluindo as de melhor filme, direção, atriz (Gascón) e atriz coadjuvante (Sandaña).
Considerando o calendário, a equipe de “Emilia Pérez”, que ainda não se pronunciou oficialmente sobre o escândalo, precisa correr contra o tempo para evitar novas polêmicas e ajustar a rota da campanha. Paralelamente a isso, Karla Sofía Gascón concedeu entrevista à CNN en español, no último domingo (02), mas, segundo a imprensa americana, sem o conhecimento prévio da Netflix e da equipe de campanha. “Eu não posso renunciar a uma indicação porque o que eu fiz foi um trabalho, e o que está sendo valorizado é o meu trabalho como atriz. E, também, não posso renunciar a uma indicação porque não cometi nenhum crime, não prejudiquei ninguém, não sou racista, nem sou nada do que todas essas pessoas se encarregaram de tentar fazer os outros acreditarem que eu sou”, afirmou durante a entrevista que durou quase uma hora e abordou, dentre tantas polêmicas, a envolvendo o nome de Selena Gomez: “É claro que [o post] não é meu. Eu nunca disse nada sobre minha colega. Jamais me referiria a ela dessa forma”.
A entrevista à CNN espanhola aconteceu após Gascón recorrer novamente às redes sociais para se desculpar e tentar esclarecer a situação, dizendo: “Reconheço, entre lágrimas, que eles venceram. Conseguiram o que queriam: manchar minha existência com mentiras ou coisas tiradas de contexto. Qualquer um que me conheça sabe que não sou racista (e, para quem se surpreender, uma das pessoas mais importantes da minha vida atualmente, e que mais amo, é muçulmana). Não sou qualquer outra coisa pela qual fui julgada e condenada sem direito a defesa, sem chance de explicar minha verdadeira intenção. Sempre lutei por uma sociedade mais justa, por um mundo de liberdade, paz e amor. Jamais apoiarei guerras, extremismos religiosos ou a opressão de povos e raças”.
Na ocasião, a atriz manteve a narrativa de que alguns posts foram criados para prejudicá-la na corrida pela estatueta dourada: “Criaram publicações como se eu tivesse insultado até minhas próprias colegas. Transformaram coisas que escrevi para enaltecer, em críticas; piadas, em verdades; palavras que, sem contexto, parecem puro ódio. Tudo isso apenas para que eu não ganhe nada e para me destruir. Minha mãe me disse ontem algo muito bonito: ‘Não me importa se você vai ganhar alguma coisa, só quero que você fique bem e que não te machuquem’. Mãe, a vida me colocou aqui para transmitir uma mensagem de esperança e amor a este mundo — e eu vou cumprir essa missão”.
Ao que parece, a narrativa de perseguição de internautas, sobretudo brasileiros, será utilizada pela atriz nesta reta final da corrida. Contudo, se isto for aceito pelos membros da AMPAS, mesmo que mantenham a suposta rejeição à Gascón e “Emilia Pérez”, alardeada por parte da imprensa americana, poderá respingar na campanha de Fernanda Torres e “Ainda Estou Aqui”, que, conforme dito anteriormente, está sendo realizada de forma ética e respeitosa desde os primórdios, pois alguns deles podem acreditar que os brasileiros querem ganhar no grito – e essa narrativa da equipe de Gascón precisa ser enfraquecida completamente e o quanto antes. Por isso, é importante, mais do que nunca, que os fãs atendam ao pedido de Torres e não transformem o Oscar numa luta de uma atriz contra a outra.
Quem se fortalece?
Aparentemente, as polêmicas em torno de Karla Sofía Gascón e Jacques Audiard ocuparão muito espaço na mídia mundial nos próximos dias, enfraquecendo a campanha de “Emilia Pérez” de forma generalizada. Neste contexto, caso os membros da AMPAS não aceitem a narrativa de que os fãs brasileiros ajudaram a derrubar Gascón, exposta por uma jornalista canadense que vasculhou suas redes sociais, “Ainda Estou Aqui” começa a despontar como título forte na categoria de melhor filme internacional.
Dirigido por Walter Salles, cineasta respeitado no exterior, “Ainda Estou Aqui” tem feito uma campanha discreta, mas correta, capitaneada pela Sony, que tem apostado alto no longa e, especialmente, em Fernanda Torres, que é uma candidata forte à estatueta de melhor atriz. Se não fosse, sua equipe não teria se tornado alvo de acusações infundadas por parte de Gascón ainda em terras brasileiras. Contudo, a categoria tem uma favorita absoluta, Demi Moore.
Concorrendo por “A Substância”, Moore também está realizando sua campanha de forma ética e respeitosa, assim como Cynthia Erivo e Mikey Madison, mas, fora do olho do furacão, pode se fortalecer, tendo como benefício o fato de Hollywood adorar histórias de superação. No caso de Demi Moore, a de uma atriz que sempre foi desacreditada pelos próprios colegas em Hollywood e coleciona quatro Framboesas de Ouro (Razzie Awards, concedido aos piores da indústria). É uma trajetória que, de certa forma, remete à de Michael Keaton, que, igualmente desacreditado, aceitou projetos questionáveis durante muitos anos, voltando ao panteão hollywoodiano somente em 2014 sob a direção do mexicano Alejandro Gonzalez Íñarritu em “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” (Birdman or The Unexpected Virtue of Ignorance – 2014, EUA), que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de melhor ator – Keaton era um dos favoritos ao prêmio e tinha a atuação mais impressionante daquele ano, mas perdeu para Eddie Redmayne por “A Teoria de Tudo” (The Theory of Everything – 2014, Reino Unido / Japão / EUA).
Mesmo subestimada ao longo de quase toda sua carreira, Demi Moore é parte da comunidade hollywoodiana e isso, por si só, conta muito na disputa pelo Oscar. Premiar Moore seria premiar a própria Hollywood num desempenho cênico realmente grandioso, o que torna a corrida de Fernanda Torres rumo ao palco do Dolby Theater ainda mais complexa. Afinal, Torres é a única brasileira dentre as cinco finalistas e precisa lidar, dentre tantas coisas, com a barreira idiomática.
No atual cenário, Demi Moore fortalece o favoritismo, tendo Fernanda Torres como ameaça, mas Erivo e Madison não podem ser subestimadas, pois também podem ser beneficiadas pelo escândalo envolvendo Gascón. Neste ponto, é importante lembrar que Moore e Torres venceram um grande termômetro do Oscar, o Globo de Ouro, nas respectivas categorias de melhor atriz em filme de comédia / musical e melhor atriz em filme de drama, que conta mais junto à Academia.
Demi Moore em cena de A Substância. Foto: Divulgação
Obviamente, o cenário pode se modificar nas próximas semanas, mas a situação de Fernanda Torres não poderá ser analisada em sua plenitude devido ao SAG Awards, pois, dentre as cinco finalistas do Oscar de atriz principal, a brasileira é a única que não concorre ao SAG.
De olho na movimentação de bastidores, Netflix, Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e toda a equipe terão de encontrar uma resposta plausível para a pergunta que paira em Hollywood desde a semana passada, inclusive sobre Lisa Taback: “E agora, Emilia Pérez?”.
Sobre Ana Carolina Garcia: Formada em Comunicação Social e pós-graduada em Jornalismo Cultural, Ana Carolina Garcia é autora dos livros “A Fantástica Fábrica de Filmes – Como Hollywood se tornou a capital mundial do cinema” (2011), “Cinema no século XXI – Modelo tradicional na Era do Streaming” (2021) e “100 anos do Império Disney: Da Avenida Kingswell à conquista do universo” (2023). É vice-presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ) desde 2021.