Três infinitos dias com Gabriel Garcia Marques

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Gabo é um homem que fala pela face. Já passou do tempo das palavras. Quando elas aparecem são raras, breves e apontam para além dos seus significantes. No rosto, sim, há muito mais sobre o mundo ao seu redor.

POR Redação SRzd 13/9/2006| 4 min de leitura

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Gabo é um homem que fala pela face. Já passou do tempo das palavras. Quando elas aparecem são raras, breves e apontam para além dos seus significantes. No rosto, sim, há muito mais sobre o mundo ao seu redor.

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Gabo é um homem que fala pela face. Já passou do tempo das palavras. Quando elas aparecem são raras, breves e apontam para além dos seus significantes. No rosto, sim, há muito mais sobre o mundo ao seu redor. Ou ao redor do encontro de jornalistas latino-americanos da Fundacion Nuevo Periodismo, criada por ele, do qual fui convidado a participar.

No começo, os óculos, tão grossos quanto as sobrancelhas e os lábios, dão a aparência de um senhor carrancudo e sem muita paciência para as coisas do mundo, as previsões, as regras, as opiniões. Nas rodas que se formam ao seu redor, ele ouve atentamente a todos e se manifesta pontualmente sobre um ou outro tema. Olhando por mais tempo, a impressão passa a ser outra: a de quem está observando tudo com a ironia de quem já viu e conhece o passo seguinte.

Neste quase deixar de usar as palavras não há rancor. Há desnecessidade, como me confirmam palavras, somente duas, trocadas com ele numa das noites. No balcão de uma danceteria que de vazia lotou-se em segundos com a chegada de dezenas de convidados do Gabo, ele espera pelo desbaratado serviço ao meu lado. Diante de meu cumprimento com a mão e daquele “Como está?” brasileiro (o que só necessita do “tudo bem”), ele responde com a face sutilmente contrita: “Mendigando por um trago”.

Tampouco aparece irritação nos seus traços mesmo diante das repetições, por mais incansáveis que elas sejam. Numa cerimônia em que ele entrega prêmios, Gabo autografa livro por livro de dezenas de pessoas. Serenamente. Para cada uma um sorriso, até que o corpo septuagenário cansa cansa e ele pede para parar.

Os seguranças, contudo, não conseguem conter os fãs que tentam ter grafada alguma expressão particular da genialidade que os encantou. Vejo uma menina de não mais de 18 anos correndo para furar o cerco e penso se o que ela realmente quer é o Gabo ou algum dos integrantes da nova explosão latina: o Rebelde. A paixão dos Buendia que ela carrega nas mãos, pulsando tão forte quanto a dela, não me deixa confundir.

Na manhã seguinte a esta cerimônia, Gabo está sentando para o último evento do encontro e chegam mais livros para ele autografar. Seu olhar permanece tranqüilo como quando estava na sala praticamente sozinho. Uma jovem agradece, quase pedindo desculpas, pela graça alcançada. E Gabo devolve-lhe um sorriso: “Não agradeça, é meu trabalho”.

Em seguida, um amigo pergunta se ele não tinha se incomodado com a noite anterior. Os lábios colados e puxados para dentro e a respiração longa indicam resignação. “Para acabar com isso só se eu mandasse todos à merda. Mas não posso…”. Gabriel García Márquez não pode. Quem pode?

Não sei se por sorte ou azar, pedira meu autógrafo no primeiro dia do encontro, antes de saber que ele não me mandaria a merda. Apresentei-me como jornalista brasileiro e ele olhou para o meu crachá. É quase certo que o fez por não entender meu portunhol. Mas continuamos a tentar nos comunicar e eu disse que gostaria de ter um autógrafo dele e dar-lhe um livro meu autografado.

Ao ver a capa, passou a mão sobre meu nome e jogou o corpo um pouco para trás em sinal de satisfação: “Firma!”, disse devolvendo-me o Cartão Vermelho e pegando da minha mão meu Memórias de Minhas Putas Tristes. Eu respondi que estava firmado e seus olhos e cenhos fecharam-se um pouco, quem sabe para indicar que eu tinha sido esperto.

Antes dele começar seu ofício, fiz um alerta. Contei-lhe que teria que autografar o livro para Viviane, minha esposa, porque aquela era a condição imposta por ela para que eu pudesse entrar novamente em casa. Gabo deu um sorriso que dizia algo sobre paixão que eu não soube entender completamente, virou-se e desenhou uma flor para ela.

Depois do autógrafo, um tapa de leve no ombro indicou-me para seguir adiante. Não consegui. Fiquei parado, olhando Gabo sumir pelos altos corredores do Museu de Arte Contemporânea de Monterrey. Só conseguia ver uma criança ainda curiosa por desvendar o sentido de cada cor, cada forma daquele prédio. Assim é com as pessoas mágicas: não dá para confiar nos nossos olhos.

*Dimmi Amora é jornalista e autor do livro “Cartão Vermelho”.

Gabo é um homem que fala pela face. Já passou do tempo das palavras. Quando elas aparecem são raras, breves e apontam para além dos seus significantes. No rosto, sim, há muito mais sobre o mundo ao seu redor. Ou ao redor do encontro de jornalistas latino-americanos da Fundacion Nuevo Periodismo, criada por ele, do qual fui convidado a participar.

No começo, os óculos, tão grossos quanto as sobrancelhas e os lábios, dão a aparência de um senhor carrancudo e sem muita paciência para as coisas do mundo, as previsões, as regras, as opiniões. Nas rodas que se formam ao seu redor, ele ouve atentamente a todos e se manifesta pontualmente sobre um ou outro tema. Olhando por mais tempo, a impressão passa a ser outra: a de quem está observando tudo com a ironia de quem já viu e conhece o passo seguinte.

Neste quase deixar de usar as palavras não há rancor. Há desnecessidade, como me confirmam palavras, somente duas, trocadas com ele numa das noites. No balcão de uma danceteria que de vazia lotou-se em segundos com a chegada de dezenas de convidados do Gabo, ele espera pelo desbaratado serviço ao meu lado. Diante de meu cumprimento com a mão e daquele “Como está?” brasileiro (o que só necessita do “tudo bem”), ele responde com a face sutilmente contrita: “Mendigando por um trago”.

Tampouco aparece irritação nos seus traços mesmo diante das repetições, por mais incansáveis que elas sejam. Numa cerimônia em que ele entrega prêmios, Gabo autografa livro por livro de dezenas de pessoas. Serenamente. Para cada uma um sorriso, até que o corpo septuagenário cansa cansa e ele pede para parar.

Os seguranças, contudo, não conseguem conter os fãs que tentam ter grafada alguma expressão particular da genialidade que os encantou. Vejo uma menina de não mais de 18 anos correndo para furar o cerco e penso se o que ela realmente quer é o Gabo ou algum dos integrantes da nova explosão latina: o Rebelde. A paixão dos Buendia que ela carrega nas mãos, pulsando tão forte quanto a dela, não me deixa confundir.

Na manhã seguinte a esta cerimônia, Gabo está sentando para o último evento do encontro e chegam mais livros para ele autografar. Seu olhar permanece tranqüilo como quando estava na sala praticamente sozinho. Uma jovem agradece, quase pedindo desculpas, pela graça alcançada. E Gabo devolve-lhe um sorriso: “Não agradeça, é meu trabalho”.

Em seguida, um amigo pergunta se ele não tinha se incomodado com a noite anterior. Os lábios colados e puxados para dentro e a respiração longa indicam resignação. “Para acabar com isso só se eu mandasse todos à merda. Mas não posso…”. Gabriel García Márquez não pode. Quem pode?

Não sei se por sorte ou azar, pedira meu autógrafo no primeiro dia do encontro, antes de saber que ele não me mandaria a merda. Apresentei-me como jornalista brasileiro e ele olhou para o meu crachá. É quase certo que o fez por não entender meu portunhol. Mas continuamos a tentar nos comunicar e eu disse que gostaria de ter um autógrafo dele e dar-lhe um livro meu autografado.

Ao ver a capa, passou a mão sobre meu nome e jogou o corpo um pouco para trás em sinal de satisfação: “Firma!”, disse devolvendo-me o Cartão Vermelho e pegando da minha mão meu Memórias de Minhas Putas Tristes. Eu respondi que estava firmado e seus olhos e cenhos fecharam-se um pouco, quem sabe para indicar que eu tinha sido esperto.

Antes dele começar seu ofício, fiz um alerta. Contei-lhe que teria que autografar o livro para Viviane, minha esposa, porque aquela era a condição imposta por ela para que eu pudesse entrar novamente em casa. Gabo deu um sorriso que dizia algo sobre paixão que eu não soube entender completamente, virou-se e desenhou uma flor para ela.

Depois do autógrafo, um tapa de leve no ombro indicou-me para seguir adiante. Não consegui. Fiquei parado, olhando Gabo sumir pelos altos corredores do Museu de Arte Contemporânea de Monterrey. Só conseguia ver uma criança ainda curiosa por desvendar o sentido de cada cor, cada forma daquele prédio. Assim é com as pessoas mágicas: não dá para confiar nos nossos olhos.

*Dimmi Amora é jornalista e autor do livro “Cartão Vermelho”.

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