Sete meses após os ataques terroristas do grupo Hamas em território israelense, a Palestina foi reconhecida como membro não-permanente da Organização das Nações Unidas (ONU). A ocupação militar da Faixa de Gaza por Israel vitimou 40 mil palestinos, além de deslocar forçosamente mais de um milhão de pessoas, mantidas em condições subhumanas na cidade de Rafah. Essa violência motivou a Corte Internacional de Justiça (órgão jurídico da ONU) a qualificar a ofensiva mlitar de Israel como “genocídio”. O governo israelense perdeu o apoio da União Europeia e se afastou dos Estados Unidos, onde a luta palestina se tornou item de campanha em ano de eleições presidenciais.
Se, como dizia Carl Von Clausewitz, a guerra é “a continuação da política por outros meios”, os impactos de ações militares devem ser avaliados fora do campo de batalha. Não sabemos a extensão dos objetivos dos participantes do conflito em Gaza. O que podemos medir são desdobramentos do confito, analisando as palavras e as ações dos envolvidos.
Desde Outubro de 2023 o Hamas perdeu o controle sobre a maior parte do território de Gaza. Entretanto, o grupo mantém em seu poder centenas de reféns israelenses. Os desdobramentos dos ataques do Hamas recolocaram a causa palestina na prateleira mais importante da agenda internacional. Os êxitos de curto prazo foram obtidos ao custo da sustentação futura da luta em solo palestino. A força do Hamas, doravante, reside nas ações de aliados. Por exemplo, o grupo paramilitar aceitou a proposta de cessar-fogo dos governos do Egito e Catar feita com apoio francês.
O terrorismo em larga escala do Hamas deu sobrevida política a Benjamin Netanyahu – acossado por denúncias de autoritarismo e corrupção em Israel. O gabinete de coalizão nacional se ancora precariamente no mote da “guerra ao terror” e na comoção popular com o maior ataque da história israelense. Entretanto, a escalada militar em Gaza não trouxe a libertação de reféns ou o “fim do Hamas” como apregoou Netanyahu. A matança de milhates de palestinos, o deslocamento forçado de milhões em condições subumanas e a permanência dos reféns em poder do Hamas fortaleceram a oposição doméstica.
A ofensiva militar em Rafah rompeu decisivamente o balanço político na direção contrária à linha-dura de Netanyahu. Membros do governo de coalizão sinalizam uma ruptura (caso do oposicionista Benny Ganz). Os Estados Unidos de Antony Blinken interromperam o envio de armamento a Israel, num sinal de desaprovação da ofensiva. O Tribunal Penal Internacional (TPI) acaba de emitir uma ordem de prisão do primeiro-ministro de Israel por crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Netanyahu busca jogar sua derrota política no colo da comunidade internacional, ao atrair o Irã para um confronto direto com Israel. Nesse caso, o efeito desejado é um apaziguamento proveitoso. A escalada do confito para além das capacidades dos governos de Teerã e Tel-Aviv atempriza o mundo e mobiiza recursos de aliados (EUA, UE, Rússia, China) já estão envolvivos em outros conflitos. O risco de Israel (e Irã) irem além de seus próprios recursos é compensado pela chance de mover a balança internacional na direção da aceitação tácita do novo status quo em Gaza. Israel busca, pois, mobilizar o isolamento da guerra em prol do engajamento do medo.
No dizer de Thomas Hobbes, os estados encaram uns aos outros com olhares ressabiados e armas na mão, prontos para o combate. A guerra seria um estado anímico em que a violência física é possível. Nesse sentido, percepções dos participantes e da audiência são mais importantes que atos de força. Assim como Israel, o Irã buscou produzir percepções internacionais favoráveis através de atos simbólicos mesclados com a força militar.
O ataque aéreo iraniano a Israel em meados de Abril de 2024 foi neutralizado rapidamente e teve impacto modesto do ponto de vista militar, mas teve enorme apelo emocional, inclusive pelo seu caráter inédito. Por alguns dias, o mundo esteve apreensivo, â espera da reação israelense, como nos dias da Crise dos Mísseis entre EUA e União Soviética, há 60 anos. A maior parte da comunidade internacional anseia pela acomodação das tensões entre os dois estados. As ações do Irã, somadas a de seus aliados no Oriente Médio, buscaram promover a república islâmica como “liderança” da luta palestina e como “potência nuclear” capaz de afetar decisivamente a estabilidade global.
As mortes do presidente iraniano Seyyed Ebrahim Raisi e do ministro das Relações Exteriores Hossein Amir Abdollahian num acidente aéreo na fronteira entre Irã e Azerbaijão em 19 de Maio de 2024 jogam gasolina na fogueira das percepções e autoimagens no conflito em Gaza.
A percepção ambivalente do Irã como “liderança” e “ameaça” perde fôlego, após a morte súbita de líderes políticos. O governo do aiatolá Ali Khamenei terá dificuldades em ocultar sinais de fraqueza institucional apõs essas perdas. O regime de Teerã buscará apagar esse evento da memória coletiva.
Uma das formas de evitar percepções de fraqueza envolve o recurso a ações impactantes, tais como novos ataques a Israel. Nesse caso, a espiral do conflito voltaria a subir, em paralelo à intervenção israelense em Rafah. Demonstrações de força tambem têm objetivo de sufocar a oposição doméstica além de manter a fidelidade dos aliados na região. Tais atos também dificultariam a aproximação de estados do Golfo Pérsico com Israel, processo iniciado por Donald Trump (“Acordos de Abraão”).
Se Israel e Irã se engalfinham na busca por controlar a percepção da comunidade internacional e públicos domésticos, não têm os custos e responsabilidades dos EUA de Joe Biden. A superpotência acenou com a retomada da liderança internacional após a pandemia e a turbulenta era Trump. No entanto, a guerra da Rússia contra a Ucrânia e o conflito em Gaza comprometeram esses esforços.
Os EUA se vêem numa posição incômoda, à medida que buscam apaziguar Israel sem antagonizar a comunidade internacional. Num ano eleitoral, Biden busca mostrar que continua respeitado por aliados. Em desvantagem nas pesquisas, uma imagem de hesitação e fraqueza (já demonstradas na Ucrânia) serve como moeda eleitoral de Trump. Mesmo em desacordo com Netanyahu, a administração democrata viu o conflito em Gaza viralizar para os campi universitários em sua própria casa. A percepção da opinião pública se inclinou em desfavor da Casa Branca, à medida que a imagem de propagada liderança se esfumaçou com o isolamento de Israel, a catástrofe humanitária e as condenações de cortes internacionais.
A UE se afastou, após vetos estadunidenses às propostas de cessar-fogo feitas na ONU e a recusa de Biden em endossar a proposta de cessar-fogo do Egito e Catar, por julgar que essas medidas feririam o direito de autodefesa de Israel. Com o bloqueio militar israeleense em Rafah – último acesso do auxíliio humanitário na fronteira de Gaza com o Egito – os EUA construiram, em tempo recorde, um “porto humanitario” em pleno Mediterrâneo. Essa foi a cartada final de Biden para diminuir seus prejuízos políticos em Gaza.
Ao analisar o efeito das ações militares fora do campo de batalha, percebemos que não apenas milhares de palestinos estão encurralados em Rafah. O entroncamento de Israel, Hamas, Irã e EUA no território de Gaza levou a dilemas e becos sem saída, de difícil resolução, em face de objetivos políticos conflitantes e concorrentes. Iniciativas de cessar-fogo propostas pelo Sul Global não foram aceitas. À espera de soluções improváveis, a estabilidade global permanece na berlinda.
* Artigo de autoria de Carlos Frederico Pereira da Silva Gama – professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins