ARTIGO: A cultura do esquecimento

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Qual a importância da ONU na busca de soluções para a crise de insegurança que assola o Rio e São Paulo? Este é o assunto da jornalista Jacqueline Sobral, especialista em Relações Internacionais.

POR Redação SRzd 23/5/2006| 5 min de leitura

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Qual a importância da ONU na busca de soluções para a crise de insegurança que assola o Rio e São Paulo? Este é o assunto da jornalista Jacqueline Sobral, especialista em Relações Internacionais.

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A impunidade está sempre na origem da violência e da violação dos Direitos Humanos. Os holofotes da mídia, nacional e internacional, voltaram-se recentemente para a ação de bandidos e a reação da polícia em São Paulo. Os crimes foram condenados pela opinião pública. As autoridades correram para dar explicações e afirmaram que encontrarão soluções para os problemas que daqui a pouco mais uma vez serão esquecidos. Quem mora no Rio de Janeiro sabe que o sistema funciona assim. Há mais de dez anos, cerca de 300 mães lutam para que os assassinos de seus filhos sejam condenados pela Justiça. As chamadas ‘Mães do Rioâ? chegaram a chamar a atenção de uma representante da ONU que veio ao Brasil em 2003. Seus casos foram relatados no relatório das Nações Unidas e na imprensa mundial. No entanto, três anos depois, quase nada mudou, dizem.

Mas de quem é a culpa? Dos poderes legislativo e executivo brasileiros; das desigualdades econômicas do país; da falta de poder punitivo de organismos internacionais como a ONU, que sustentam a bandeira de proteção dos Direitos Humanos, mas são limitados por esta ordem mundial realista na qual a soberania não pode ser violada. Podemos também usar o lugar-comum e responsabilizar a famosa Globalização.

Em 3 de outubro de 2003, a então relatora especial da ONU para Execuções Sumárias e Arbitrárias, a paquistanesa Asma Jahangir, chegou ao Rio para uma visita de três dias. Foi ao Morro do Borel, ao Jacarezinho, participou de reuniões com ativistas e com integrantes do governo do Estado. Ela foi recebida por ONGs e pelo grupo das mães.

Ouviu reclamações, recebeu relatórios dos ativistas com números da violência. Declarou publicamente que as autoridades fluminenses tratavam os Direitos Humanos com descaso. Chegou a se emocionar e a se irritar com a cúpula de Segurança Pública do Rio. A missão foi tema de diversas reportagens aqui e em outros países. Seu relatório, divulgado em fevereiro de 2004, também apareceu na imprensa, mas já com menos força. Vale lembrar que no Rio o assunto sofreu a concorrência desleal do Carnaval, que ocupava quase todas as páginas dos jornais.

‘No Congo, existe uma guerra. O Brasil é uma democracia, mas o que vejo aqui é uma desgraça. Uma triste situação em que não há justiçaâ?, afirmou Asma, na época. Seu relatório ressaltou que de 45 mil a 50 mil homicídios são cometidos no Brasil todo o ano e que apenas 7,8% desses são investigados e julgados com sucesso.

Passados três anos, a vida das Mães do Rio continua igual, sem mudanças. ‘Até hoje, não vi um caso solucionado no mundo por conta dessas visitas da ONU. Acho que esses relatores vêm, usam o caso da gente, mas não fazem nada por nósâ?, me disse Eristéia de Azevedo, líder do grupo. Seu filho William foi assassinado com três colegas em 1998, no Maracanã, supostamente por policiais. Segundo Eristéia, até hoje, oito anos depois, o caso ainda é inquérito policial. Ela foi uma das mães que teve a oportunidade de conversar pessoalmente com a Asma e se diz decepcionada já que nada mudou.

A única parente de vítima da violência do Rio que me relatou um efeito positivo da visita da ONU foi Patrícia dos Santos, irmã de Wagner dos Santos, único sobrevivente da Chacina da Candelária. Ela disse que, após a missão das Nações Unidas, o governo brasileiro decidiu financiar duas cirurgias do irmão, realizadas em 2003. No entanto, o Estado já não se manifestou no ano passado em relação à outra operação que precisava ser feita. Wagner sofre de saturnismo, doença causada pela presença de chumbo no organismo em níveis excessivos ‘ duas balas de chumbo ficaram no corpo de Wagner, uma na nuca e outra abaixo do ouvido direito.

Claro que a culpa não é da ONU. O trabalho dos relatores especiais tem o poder de dar visibilidade ao que o país se nega a debater. Falta investigação e vontade de punir e essas tarefas são de nossas instituições. O que se tem hoje é a banalização da violência, como se ela fosse normal, aceitável. É graças a essa imensa e constante quantidade de crimes que o espaço privado está mais fortalecido nos brasileiros que a concepção do público. A idéia do direito à propriedade, do direito individual, é muito mais forte do que qualquer concepção pública de segurança ou de Direitos Humanos. A gente tem cada vez mais medo e não vê outra alternativa a não ser se esconder atrás do vidro fechado do carro.

A realidade é assustadora, mas nem tudo está perdido. Existe hoje uma mobilização da sociedade civil em ONGs e em movimentos com o objetivo único de consolidar os Direitos Humanos no Brasil. A própria visita de Asma em 2003 foi fruto dessa união ‘ diversos grupos denunciaram a violência para a ONU e pressionaram o governo a convidar a representante, já que um relator só pode ir a um país se solicitado.

ONGs atuam hoje no Brasil utilizando-se do que muitos especialistas chamam de ‘redes transnacionais de ativismoâ?: intensa troca de informações e dados, com base e investigações, entre grupos do mundo inteiro unidos por uma mesma causa. Eles acreditam que juntos podem fazer mais barulho. O trabalho é árduo e os resultados só ocorrerão a longo prazo. O historiador Marcelo Freixo, da Justiça Global, cita Zigmunt Bauman e diz que o desafio do capitalismo não é acabar com a pobreza e sim com o pobre. ‘A problemática dos Direitos Humanos está toda aíâ?, afirma. Se a ONU não resolve, é aquela velha história: ruim com ela, pior sem ela. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à ‘cultura do esquecimentoâ? e à rapidez com que os holofotes da imprensa e da opinião pública iluminam os casos de violência e se apagam. Quem lembrava da visita da ONU ao Rio em 2003 ou parou para se perguntar o que mudou de lá para cá? Pois é. A questão é complexa, a batalha é lenta, mas não se pode desistir. Dizem que a esperança ainda anda por aí – conseguiu escapar de dentro de um ônibus incendiado, crime tão banal nos dias de hoje.

Jacqueline Sobral é jornalista e especialista em Relações Internacionais

A impunidade está sempre na origem da violência e da violação dos Direitos Humanos. Os holofotes da mídia, nacional e internacional, voltaram-se recentemente para a ação de bandidos e a reação da polícia em São Paulo. Os crimes foram condenados pela opinião pública. As autoridades correram para dar explicações e afirmaram que encontrarão soluções para os problemas que daqui a pouco mais uma vez serão esquecidos. Quem mora no Rio de Janeiro sabe que o sistema funciona assim. Há mais de dez anos, cerca de 300 mães lutam para que os assassinos de seus filhos sejam condenados pela Justiça. As chamadas ‘Mães do Rioâ? chegaram a chamar a atenção de uma representante da ONU que veio ao Brasil em 2003. Seus casos foram relatados no relatório das Nações Unidas e na imprensa mundial. No entanto, três anos depois, quase nada mudou, dizem.

Mas de quem é a culpa? Dos poderes legislativo e executivo brasileiros; das desigualdades econômicas do país; da falta de poder punitivo de organismos internacionais como a ONU, que sustentam a bandeira de proteção dos Direitos Humanos, mas são limitados por esta ordem mundial realista na qual a soberania não pode ser violada. Podemos também usar o lugar-comum e responsabilizar a famosa Globalização.

Em 3 de outubro de 2003, a então relatora especial da ONU para Execuções Sumárias e Arbitrárias, a paquistanesa Asma Jahangir, chegou ao Rio para uma visita de três dias. Foi ao Morro do Borel, ao Jacarezinho, participou de reuniões com ativistas e com integrantes do governo do Estado. Ela foi recebida por ONGs e pelo grupo das mães.

Ouviu reclamações, recebeu relatórios dos ativistas com números da violência. Declarou publicamente que as autoridades fluminenses tratavam os Direitos Humanos com descaso. Chegou a se emocionar e a se irritar com a cúpula de Segurança Pública do Rio. A missão foi tema de diversas reportagens aqui e em outros países. Seu relatório, divulgado em fevereiro de 2004, também apareceu na imprensa, mas já com menos força. Vale lembrar que no Rio o assunto sofreu a concorrência desleal do Carnaval, que ocupava quase todas as páginas dos jornais.

‘No Congo, existe uma guerra. O Brasil é uma democracia, mas o que vejo aqui é uma desgraça. Uma triste situação em que não há justiçaâ?, afirmou Asma, na época. Seu relatório ressaltou que de 45 mil a 50 mil homicídios são cometidos no Brasil todo o ano e que apenas 7,8% desses são investigados e julgados com sucesso.

Passados três anos, a vida das Mães do Rio continua igual, sem mudanças. ‘Até hoje, não vi um caso solucionado no mundo por conta dessas visitas da ONU. Acho que esses relatores vêm, usam o caso da gente, mas não fazem nada por nósâ?, me disse Eristéia de Azevedo, líder do grupo. Seu filho William foi assassinado com três colegas em 1998, no Maracanã, supostamente por policiais. Segundo Eristéia, até hoje, oito anos depois, o caso ainda é inquérito policial. Ela foi uma das mães que teve a oportunidade de conversar pessoalmente com a Asma e se diz decepcionada já que nada mudou.

A única parente de vítima da violência do Rio que me relatou um efeito positivo da visita da ONU foi Patrícia dos Santos, irmã de Wagner dos Santos, único sobrevivente da Chacina da Candelária. Ela disse que, após a missão das Nações Unidas, o governo brasileiro decidiu financiar duas cirurgias do irmão, realizadas em 2003. No entanto, o Estado já não se manifestou no ano passado em relação à outra operação que precisava ser feita. Wagner sofre de saturnismo, doença causada pela presença de chumbo no organismo em níveis excessivos ‘ duas balas de chumbo ficaram no corpo de Wagner, uma na nuca e outra abaixo do ouvido direito.

Claro que a culpa não é da ONU. O trabalho dos relatores especiais tem o poder de dar visibilidade ao que o país se nega a debater. Falta investigação e vontade de punir e essas tarefas são de nossas instituições. O que se tem hoje é a banalização da violência, como se ela fosse normal, aceitável. É graças a essa imensa e constante quantidade de crimes que o espaço privado está mais fortalecido nos brasileiros que a concepção do público. A idéia do direito à propriedade, do direito individual, é muito mais forte do que qualquer concepção pública de segurança ou de Direitos Humanos. A gente tem cada vez mais medo e não vê outra alternativa a não ser se esconder atrás do vidro fechado do carro.

A realidade é assustadora, mas nem tudo está perdido. Existe hoje uma mobilização da sociedade civil em ONGs e em movimentos com o objetivo único de consolidar os Direitos Humanos no Brasil. A própria visita de Asma em 2003 foi fruto dessa união ‘ diversos grupos denunciaram a violência para a ONU e pressionaram o governo a convidar a representante, já que um relator só pode ir a um país se solicitado.

ONGs atuam hoje no Brasil utilizando-se do que muitos especialistas chamam de ‘redes transnacionais de ativismoâ?: intensa troca de informações e dados, com base e investigações, entre grupos do mundo inteiro unidos por uma mesma causa. Eles acreditam que juntos podem fazer mais barulho. O trabalho é árduo e os resultados só ocorrerão a longo prazo. O historiador Marcelo Freixo, da Justiça Global, cita Zigmunt Bauman e diz que o desafio do capitalismo não é acabar com a pobreza e sim com o pobre. ‘A problemática dos Direitos Humanos está toda aíâ?, afirma. Se a ONU não resolve, é aquela velha história: ruim com ela, pior sem ela. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à ‘cultura do esquecimentoâ? e à rapidez com que os holofotes da imprensa e da opinião pública iluminam os casos de violência e se apagam. Quem lembrava da visita da ONU ao Rio em 2003 ou parou para se perguntar o que mudou de lá para cá? Pois é. A questão é complexa, a batalha é lenta, mas não se pode desistir. Dizem que a esperança ainda anda por aí – conseguiu escapar de dentro de um ônibus incendiado, crime tão banal nos dias de hoje.

Jacqueline Sobral é jornalista e especialista em Relações Internacionais

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