INTERNACIONAL: Dinheiro jogado fora

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Relatório da ActionAid mostra que quase metade dos recursos destinados à ajuda humanitária é mal gasta, principalmente na contratação de consultores – perdas chegam a US$ 37 bilhões.

POR Redação SRzd21/08/2006|7 min de leitura

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A ajuda humanitária internacional tem crescido anualmente, mas não a um ritmo satisfatório, nem com a eficiência necessária. Dois relatórios produzidos recentemente mostram que, apesar do aumento do volume de recursos, o que realmente chega aos países em desenvolvimento não é tanto quanto se anuncia.

De acordo com o relatório Real Aid 2 (Ajuda Real), produzido pela ONG britânica ActionAid e lançado em julho, cerca de US$ 37 bilhões dos US$ 79 bilhões de ajuda humanitária oferecidos em 2004 não têm nenhum resultado para o desenvolvimento dos países mais pobres do mundo. Ou seja, 46% dos recursos foram “ajuda-fantasma”. O montante é usado para pagar consultores e técnicos cujo trabalho não é relevante e, algumas vezes, é até mesmo prejudicial, apesar de muito bem-remunerado. Nesse valor também estão incluídos cancelamentos de dívidas, o que não é considerado uma ajuda realmente produtiva, ainda que benéfica. “Ao realizar esses estudos, a ActionAid está preocupada em saber se a ajuda dada aos países pobres realmente chega a quem precisa”, afirma Alexandre Arrais, coordenador do programa de educação da ONG no Brasil.

Outro estudo, feito pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), também lançado em julho, mostra que boa parte dos US$ 20 bilhões anunciados como ajuda humanitária, na verdade, não passa de perdão de dívidas. O número da Unctad exclui empréstimos de doadores como a própria ONU, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a União Européia. Essas exceções justificam a discrepância com os números da ONG britânica. O cancelamento de débitos, de acordo com o relatório “The Least Developed Countries Report 2006: Developing Productive Capacities” não deixa de ser algo positivo, mas não representa uma colaboração real para o país se desenvolver.
“O cancelamento da dívida é visto pela maioria dos países doadores como uma forma de ajuda ao desenvolvimento, o que está certo. Porém o não-pagamento de um empréstimo, que é esquecido, não tem nenhum impacto sobre novos recursos para o desenvolvimento”, afirmou no último encontro do G-8 o administrador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Kemal Dervis. O G-8 reúne os oito países mais ricos do mundo.

Dinheiro mal-gasto

O Real Aid 2 é a segunda edição de um estudo da ONG britânica sobre o tamanho da ajuda humanitária em todo o mundo. O principal foco de suas críticas é a contratação de assistência técnica a preços muito altos. O relatório atualiza e retoma alguns números expostos na primeira edição, lançada em 2005.

No ano passado, o relatório descobriu que apenas 40% da cooperação era “real”, ou seja, direcionada para a redução da pobreza no país necessitado. O restante era destinado a especialistas, geralmente vindos dos países mais ricos do mundo.

Metade dos recursos destinados ao Camboja, por exemplo, foi gasta com 740 consultores internacionais. Os 50% restantes foram gastos com serviços para 160 mil pessoas. Mais gente, portanto, poderia ter sido ajudada, caso não houvesse tanto gasto com especialistas. A primeira edição do Real Aid se baseou em estudos de caso feitos no Camboja, no Vietnã, em Uganda e na Etiópia, além de análises de dados de diversos governos do Primeiro Mundo. O levantamento de dados se refere a 2003.

Este ano o relatório revela uma melhora nos gastos internacionais. Desta vez, apenas 25% dos recursos foram gastos com “ajuda-fantasma” de especialistas. O ano base é 2005 e, além da consulta a dados governamentais, foram estudados projetos em Gana, Tanzânia, Serra Leoa, Quênia e Camboja.

Se em 2003 foram mal-gastos US$ 42 bilhões, no ano seguinte foram US$ 37 bilhões, cinco bilhões a menos. O total de ajuda aumentou em US$ 10 bilhões ‘ de US$ 69 bi para US$ 79 bi ‘ o equivalente a 14%. Apesar da diminuição do desperdício, a ActionAid ainda acredita que há muito dinheiro sendo mal-empregado.

De acordo com os cálculos do Real Aid 2, alguns países apresentam níveis muito altos de ajuda-fantasma. Portugal, por exemplo, lidera o ranking, com 82% de gastos com consultores e perdão de dívidas. O índice é 30 pontos percentuais maior do que o verificado em 2003. A diferença se deve a perdões de dívidas concedidos a Angola em 2004.

Os EUA, maiores doadores em termos absolutos, apresentaram índice fantasma de 62%, contra 72% em 2003. Na outra ponta da tabela está a Irlanda, que manteve os 13% de ajuda disfarçada, de acordo com os critérios da ActionAid. Luxemburgo vem logo atrás, com índice de 16%. A Suécia tem 21%.

Consultorias

A principal fonte de desperdício, de acordo com a ONG, é a contratação de assistência técnica. A organização acredita que esse trabalho é caro (alguns consultores chegam a ganhar US$ 200 mil por ano), ineficiente e, pior, “empurra” soluções inadequadas à região onde vão trabalhar, baseando-se no princípio de que “o Ocidente sabe o que é melhor”.

A ActionAid calcula que só na contratação de consultores foram gastos US$ 18,7 bilhões em 2004 ‘ quase metade do valor calculado como fantasma e 15% do total de ajuda. EUA, Alemanha, França e Japão, os quatro maiores doadores em termos absolutos, respondem por 75% dos recursos empregados em assistência técnica.
Citando dados do Comitê de Assistência ao Desenvolvimento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a ActionAid afirma que, na maioria dos casos, o custo com consultores vai muito além do salário. É preciso pagar moradia, escolas para filhos, viagens para casa e outras despesas. “Esses são custos associados a consultores expatriados, e não seriam necessários se consultores locais fossem utilizados”, critica o texto.

Os maiores doadores costumam dar preferência a funcionários nacionais, mesmo que seu preço seja mais alto. Em Gana, a diária paga a consultores inexperientes é maior do que o salário mensal de funcionários locais, por exemplo. Os especialistas, porém, são reconhecidamente ineficientes. A OCDE diz não haver nenhuma correlação entre emprego de assistência técnica e performance econômica.

As soluções apresentadas nem sempre são as melhores para o país, critica a ONG. A Tanzânia, por exemplo, privatizou a companhia de águas de sua maior cidade, aconselhada por consultores britânicos. O resultado veio dois anos depois, quando dois milhões de pessoas de Dar es Salaam ficaram sem água.

De acordo com Alexandre Arrais, do escritório brasileiro da ActionAid, o principal problema dos consultores é não dar atenção aos conhecimentos tradicionais das comunidades onde irão trabalhar. “É preciso ouvir as pessoas e suas organizações em nível local, pois são eles quem tem o conhecimento.”

O RealAid 2 não traz números relativos à América Latina, mas Arrais afirma que 70% da ajuda de governos de países ricos é aplicada em assistência técnica em países como Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile.

Críticas

As críticas da ActionAid não passaram em branco. Alguns governos manifestaram publicamente contrariedade ao relatório desde sua primeira edição. Tanto que a organização chegou a mudar sua metodologia de cálculo da primeira para a segunda edição. Ainda assim, a entidade afirmou que as possíveis distorções se devem à falta de transparência dos doadores oficiais em relação a suas ações de cooperação internacional.

A entidade afirma que desconsidera o perdão de dívida como ajuda humanitária por acreditar que a cooperação deve ser algo extra e capaz de injetar recursos na economia local. Diz, porém, acreditar em benefícios de cancelamento de dívidas e afirma que quer apenas evitar que doadores pareçam mais generosos do que realmente são.

Soluções

De acordo com a ActionAid, para que a assistência técnica seja real, é preciso seguir quatro princípios: colocar os receptores de ajuda no comando dos projetos, deixá-los escolher o melhor caminho para seu desenvolvimento, melhorar a prestação de contas entre doadores e receptores e respeitar a especificidade de cada país e região. “Isso significa que os países pobres devem começar a ter responsabilidade de definir suas necessidades e estratégias de desenvolvimento”, conclui Arrais.

* Especial para a Revista do Terceiro Setor.

A ajuda humanitária internacional tem crescido anualmente, mas não a um ritmo satisfatório, nem com a eficiência necessária. Dois relatórios produzidos recentemente mostram que, apesar do aumento do volume de recursos, o que realmente chega aos países em desenvolvimento não é tanto quanto se anuncia.

De acordo com o relatório Real Aid 2 (Ajuda Real), produzido pela ONG britânica ActionAid e lançado em julho, cerca de US$ 37 bilhões dos US$ 79 bilhões de ajuda humanitária oferecidos em 2004 não têm nenhum resultado para o desenvolvimento dos países mais pobres do mundo. Ou seja, 46% dos recursos foram “ajuda-fantasma”. O montante é usado para pagar consultores e técnicos cujo trabalho não é relevante e, algumas vezes, é até mesmo prejudicial, apesar de muito bem-remunerado. Nesse valor também estão incluídos cancelamentos de dívidas, o que não é considerado uma ajuda realmente produtiva, ainda que benéfica. “Ao realizar esses estudos, a ActionAid está preocupada em saber se a ajuda dada aos países pobres realmente chega a quem precisa”, afirma Alexandre Arrais, coordenador do programa de educação da ONG no Brasil.

Outro estudo, feito pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), também lançado em julho, mostra que boa parte dos US$ 20 bilhões anunciados como ajuda humanitária, na verdade, não passa de perdão de dívidas. O número da Unctad exclui empréstimos de doadores como a própria ONU, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a União Européia. Essas exceções justificam a discrepância com os números da ONG britânica. O cancelamento de débitos, de acordo com o relatório “The Least Developed Countries Report 2006: Developing Productive Capacities” não deixa de ser algo positivo, mas não representa uma colaboração real para o país se desenvolver.
“O cancelamento da dívida é visto pela maioria dos países doadores como uma forma de ajuda ao desenvolvimento, o que está certo. Porém o não-pagamento de um empréstimo, que é esquecido, não tem nenhum impacto sobre novos recursos para o desenvolvimento”, afirmou no último encontro do G-8 o administrador do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), Kemal Dervis. O G-8 reúne os oito países mais ricos do mundo.

Dinheiro mal-gasto

O Real Aid 2 é a segunda edição de um estudo da ONG britânica sobre o tamanho da ajuda humanitária em todo o mundo. O principal foco de suas críticas é a contratação de assistência técnica a preços muito altos. O relatório atualiza e retoma alguns números expostos na primeira edição, lançada em 2005.

No ano passado, o relatório descobriu que apenas 40% da cooperação era “real”, ou seja, direcionada para a redução da pobreza no país necessitado. O restante era destinado a especialistas, geralmente vindos dos países mais ricos do mundo.

Metade dos recursos destinados ao Camboja, por exemplo, foi gasta com 740 consultores internacionais. Os 50% restantes foram gastos com serviços para 160 mil pessoas. Mais gente, portanto, poderia ter sido ajudada, caso não houvesse tanto gasto com especialistas. A primeira edição do Real Aid se baseou em estudos de caso feitos no Camboja, no Vietnã, em Uganda e na Etiópia, além de análises de dados de diversos governos do Primeiro Mundo. O levantamento de dados se refere a 2003.

Este ano o relatório revela uma melhora nos gastos internacionais. Desta vez, apenas 25% dos recursos foram gastos com “ajuda-fantasma” de especialistas. O ano base é 2005 e, além da consulta a dados governamentais, foram estudados projetos em Gana, Tanzânia, Serra Leoa, Quênia e Camboja.

Se em 2003 foram mal-gastos US$ 42 bilhões, no ano seguinte foram US$ 37 bilhões, cinco bilhões a menos. O total de ajuda aumentou em US$ 10 bilhões ‘ de US$ 69 bi para US$ 79 bi ‘ o equivalente a 14%. Apesar da diminuição do desperdício, a ActionAid ainda acredita que há muito dinheiro sendo mal-empregado.

De acordo com os cálculos do Real Aid 2, alguns países apresentam níveis muito altos de ajuda-fantasma. Portugal, por exemplo, lidera o ranking, com 82% de gastos com consultores e perdão de dívidas. O índice é 30 pontos percentuais maior do que o verificado em 2003. A diferença se deve a perdões de dívidas concedidos a Angola em 2004.

Os EUA, maiores doadores em termos absolutos, apresentaram índice fantasma de 62%, contra 72% em 2003. Na outra ponta da tabela está a Irlanda, que manteve os 13% de ajuda disfarçada, de acordo com os critérios da ActionAid. Luxemburgo vem logo atrás, com índice de 16%. A Suécia tem 21%.

Consultorias

A principal fonte de desperdício, de acordo com a ONG, é a contratação de assistência técnica. A organização acredita que esse trabalho é caro (alguns consultores chegam a ganhar US$ 200 mil por ano), ineficiente e, pior, “empurra” soluções inadequadas à região onde vão trabalhar, baseando-se no princípio de que “o Ocidente sabe o que é melhor”.

A ActionAid calcula que só na contratação de consultores foram gastos US$ 18,7 bilhões em 2004 ‘ quase metade do valor calculado como fantasma e 15% do total de ajuda. EUA, Alemanha, França e Japão, os quatro maiores doadores em termos absolutos, respondem por 75% dos recursos empregados em assistência técnica.
Citando dados do Comitê de Assistência ao Desenvolvimento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a ActionAid afirma que, na maioria dos casos, o custo com consultores vai muito além do salário. É preciso pagar moradia, escolas para filhos, viagens para casa e outras despesas. “Esses são custos associados a consultores expatriados, e não seriam necessários se consultores locais fossem utilizados”, critica o texto.

Os maiores doadores costumam dar preferência a funcionários nacionais, mesmo que seu preço seja mais alto. Em Gana, a diária paga a consultores inexperientes é maior do que o salário mensal de funcionários locais, por exemplo. Os especialistas, porém, são reconhecidamente ineficientes. A OCDE diz não haver nenhuma correlação entre emprego de assistência técnica e performance econômica.

As soluções apresentadas nem sempre são as melhores para o país, critica a ONG. A Tanzânia, por exemplo, privatizou a companhia de águas de sua maior cidade, aconselhada por consultores britânicos. O resultado veio dois anos depois, quando dois milhões de pessoas de Dar es Salaam ficaram sem água.

De acordo com Alexandre Arrais, do escritório brasileiro da ActionAid, o principal problema dos consultores é não dar atenção aos conhecimentos tradicionais das comunidades onde irão trabalhar. “É preciso ouvir as pessoas e suas organizações em nível local, pois são eles quem tem o conhecimento.”

O RealAid 2 não traz números relativos à América Latina, mas Arrais afirma que 70% da ajuda de governos de países ricos é aplicada em assistência técnica em países como Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile.

Críticas

As críticas da ActionAid não passaram em branco. Alguns governos manifestaram publicamente contrariedade ao relatório desde sua primeira edição. Tanto que a organização chegou a mudar sua metodologia de cálculo da primeira para a segunda edição. Ainda assim, a entidade afirmou que as possíveis distorções se devem à falta de transparência dos doadores oficiais em relação a suas ações de cooperação internacional.

A entidade afirma que desconsidera o perdão de dívida como ajuda humanitária por acreditar que a cooperação deve ser algo extra e capaz de injetar recursos na economia local. Diz, porém, acreditar em benefícios de cancelamento de dívidas e afirma que quer apenas evitar que doadores pareçam mais generosos do que realmente são.

Soluções

De acordo com a ActionAid, para que a assistência técnica seja real, é preciso seguir quatro princípios: colocar os receptores de ajuda no comando dos projetos, deixá-los escolher o melhor caminho para seu desenvolvimento, melhorar a prestação de contas entre doadores e receptores e respeitar a especificidade de cada país e região. “Isso significa que os países pobres devem começar a ter responsabilidade de definir suas necessidades e estratégias de desenvolvimento”, conclui Arrais.

* Especial para a Revista do Terceiro Setor.

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