Uma das maneiras pelas quais podemos medir o medo que os grupos hegemônicos têm de perderem o poder totalitário é olhando para os esforços desmedidos que eles exercem sob o controle da cultura. Uma dessas maneiras é através do monopólio dos meios de comunicação. A outra, do ensino.
Os membros do poder Legislativo da Flórida, estado ultraconservador americano, sabem bem disso e estão fazendo de tudo para controlar o jeito como a História dos Estados Unidos é ensinada nas escolas públicas e passada através das gerações.
Estão tentando impedir qualquer forma de pensamento crítico e questionamentos que possam surgir nas salas de aula, e desta para as salas de jantar, e então para as ruas, daí para as urnas…
O Estado da Flórida tornou-se o primeiro a impedir (em forma de Lei, que acaba de ser aprovada) qualquer modo de interpretação histórica e crítica nas salas de aula das escolas públicas do estado. Para qualquer cidadão normal, isso já seria de se arrepiar até o ultimo fio de cabelo. Como professora universitária na terra do Tio Sam, faltam-me palavras para descrever o que sinto.
O ensino de História, que deveria ter como uma das metas questionar acontecimentos através da análise de fatos, ou talvez aprender através de erros, acaba de ser substituído pelo dogma ultraconservador e pró-capitalista americano. Qualquer pensamento crítico dos alunos está totalmente fora de questão, de acordo com a nova lei. Como se já não bastasse a total hegemonia propagandista dos principais meios de comunicação, que executam lavagem cerebral diária, agora nem mesmo nas escolas é possível se questionar fatos. O pensamento crítico foi totalmente banido – na Flórida, pelo menos.
Como é de conhecimento de todos, os estudantes americanos aprendem uma versão um tanto unilateral e ultra-patriótica da História onde, a (dita) inerente superioridade do país quase nunca é questionada. A não ser por certos professores idealistas e liberais… Mas agora, nem mesmo isso será possível.
O Projeto de Lei da Educação, que acaba de ser sancionado pelo Governador Jeb Bush (tinha que ser um Bush…), é claro: “A História dos Estados Unidos tem que ser vista como factual, e não como uma construção”. E entende-se que como “história factual”, ela deve ser encarada como algo “knowable, teachable and testable” (conhecível, educável e testável – empiricamente).
Os legisladores da Flórida estão impondo, pela força da lei, uma maneira bem específica da História. Estão na verdade, reescrevendo uma História.
A lei também impõe que deve-se enfatizar o quanto a “livre iniciativa” é importante para o bem da economia, seja ela americana ou qualquer outra. Os professores das escolas públicas da Flórida agora têm que ensinar que a História americana é melhor do que as outras, sem direito a qualquer interpretação e questionamento crítico. Se esta já era uma tarefa difícil antes da lei, agora então…
Além disso, está se tentando mostrar que a História americana é um fato. E por natureza, imutável, inquestionável, sem direito a qualquer tipo de interpretação. Mas quem disse que “factual” e “construído” são termos mutuamente exclusivos no que diz respeito ao estudo da História ou de qualquer outra coisa, por assim dizer?
É claro que alguns fatos são unânimes. Mas a maneira como eles são apresentados, ou narrados, depende sim de interpretação, do referencial, da construção.
Um exemplo claro: é fato que os europeus vieram para a América no século XVII. Teriam eles sido colonizadores pacíficos, ou seriam selvagens que praticaram o genocídio de milhares de índios? Depende da interpretação dos fatos. E a “Guerra contra o terror”? Será uma luta pela democracia, ou tem algo a ver com o petróleo?
É bom lembrar que um dos grandes alicerces do Iluminismo é que nenhuma teoria está livre de ser questionada. Para uma sociedade que se autoproclama livre (“leader of the free world”), o fato de que a Flórida estar impondo somente uma resposta a qualquer uma das questões acima é revoltante! É “Flórida” mesmo, eu diria!
Samantha Nogueira é jornalista e correspondente do SRZD nos Estados Unidos.