Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) definiu a Covid-19 como uma pandemia global.
Quatro anos após o início da pandemia, o número de casos da doença em escala global superou 700 milhões. Dentre eles, o novo Coronavírus fez mais de 7 milhões de vítimas (número superior às vitimas do Holocausto na Segunda Guerra Mundial).
Uma em cada dez pessoas no planeta contraiu Covid-19. 1% das pessoas infectadas pelo novo Coronavírus faleceu.
A pandemia mudou a face da globalização. Nas décadas anteriores, valoriamos as vantagens de um mundo no qual fluxos de pessoas, informações, ideias e dinheiro não eram mais limitados pelas fronteiras dos estados nacionais. De repente, vimos com nitidez outra faceta da globalização – já dantes ensaiada pelo terrorismo global e encenada pelas crises econômicas globais de 1994 e 2008.
Num mundo globalizado, a pandemia foi enfrentada em três etapas, que revelaram as principais características da ordem internacional contemporânea.
No início de 2020, a Covid era considerada uma “doença chinesa”, Após a China se fechar para o mundo, o mundo se fechou para a China – enquanto o novo Coronavírus era detectado no esgoto de grandes cidades europeias, como Barcelona. O fracasso da tentativa de erguer novos muros nas relações internacionais 30 anos após a queda do famoso Muro de Berlim foi rapidamente percebido.
Se os muros não contiveram o vírus, os estados utilizaram as ferramentas da soberania para tentar conter a mobilidade das pessoas e fluxos globalizados. Boa parte do mundo se viu hermeticamente fechada em lockdowns. Dentro de cada sociedade, vivemos os incômodos do distanciamento social. O mundo viveu a depressão pandêmica, com as maiores perdas econômicas desde o crash de 1929.
Ao longo do século 21, a cooperação internacional enfrentou uma prolongada crise. As instituições internacionais foram alvo preferencial dos governos populistas, símbolos da falência globalizada. O comércio internacional estancou, vítima de disputas prolongadas entre as maiores economias. A segurança internacional sofria as consequências de guerras civis na Síria e Iêmen, além da invasão russa da ucraniana Criméia. Retrações nos compromissos internacionais eram visíveis nas áreas do meio ambiente e promoção do desenvolvimento. O Brexit e a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos eram as imagens mais visíveis de um mundo fragmentado.
Foi nesse mundo que buscamos sobreviver e, com auxílio da ciência (outra vítima da desinformação populista), produzir vacinas contra a Covid-19 em tempo recorde. À medida que surgiam novas variantes do Coronavírus, a corrida por vacinas e insumos médicos se intensificou – e a cooperação internacional permaneceu em baixa.
A OMS não conseguiu coordenar os esforços nacionais – graças à postura hostil de governos nos epicentros da pandemia (os EUA de Trump, o Brasil de Bolsonaro e o México de López Obrador). Tentativas de criar fundos globais para distribuir respiradores e auxílio humanitário para estados menos desenvolvidos foram minimizados pelos lockdowns e pela depressão reinante. Ao mesmo tempo, muitos estados adotavam medidas de auxílio emergencial para suas respectivas populações, numa escala sem precedentes desde a crise de 1929 (superando 15% do PIB, no caso de Cingapura).
O ritmo da vacinação (iniciada em Dezembro de 2020 no Reino Unido) foi lento e desigual em escala global. As vacinas criadas em diferentes partes do mundo não foram disponibilizadas para todos. Enquanto isso, casos e mortes atingiram nível recorde entre janeiro de 2021 e maio de 2022.
Nesse ínterim, nas democracias atingidas pela Covid-19, mudanças políticas profundas ocorriam nas urnas, tirando do poder governos associados com a pandemia. A derrota de Trump nos EUA foi seguida pelo fim da longa hegemonia dos conservadores na Alemanha liderados por Angela Merkel.
O efeito Covid mudou a polaridade de governos mundo afora. Vitórias da extrema-direita na Itália, Argentina e Portugal contrastaram com o retorno da esquerda ao poder no Chile, Colômbia e Brasil. Na Espanha – símbolo do impasse global – os socialistas foram derrotados nas urnas, mas os conservadores não conseguiram formar novo governo. Dentre os epicentros da pandemia, apenas França, Índia e Reino Unido mantiveram as mesmas forças políticas no poder ao longo do período.
Os efeitos da vacinação apareceram ao longo de 2022 e 2023, mesmo nos estados com governos negacionistas e a despeito da falta de coordenação. Novos casos e mortes caíram dramaticamente. Por sua vez, programas de auxilio emergencial pavimentaram uma vigorosa recuperação econômica global após 2021 (abreviada, a seguir, pela invasão russa da Ucrânia). O comércio internacional superou o patamar de 2019 ainda em 2022. Hoje a economia global é maior que nos anos do Brexit.
Com novos governos e boas notícias, de repente, sentimos que a pandemia tinha chegado ao “fim”. Entretanto, mais de 50 mil novos casos de Covid-19 são detectados diariamente, e mais de 500 pessoas morrem todos os dias vítimas do novo Coronavírus ou de comorbidades.
A cooperação internacional se retraiu ao longo da pandemia e hoje se encontra num patamar ainda mais precário do que o de 2019. A comunidade internacional enfrenta enormes dificuldades para promover o desenvolvimento sustentável e os direitos humanos, e se vê paralisada diante da guerra russa contra a Ucrânia e o conflito na Faixa de Gaza entre Israel, Hamas e seus respectivos aliados.
A pandemia marcou uma transformação na dinâmica econômica internacional.
A disputa entre China e EUA desaqueceu, à medida que as gigantescas economias desaceleraram no ritmo
pandêmico.
O desempenho econômico modesto colocou Xi Jinping na defensiva e semeou dúvidas sobre a viabilidade do modelo chinês. A China ocupou as manchetes ao abandonar subitamente sua política “Covid zero” em 2022. Isso simbolizou limites da soberana nacional diante dos desafios globais.
Joe Biden amarga altas taxas de rejeição e vê o rival republicano Donald Trump favorito para ocupar a Casa Branca.
No vácuo dos gigantes, outras economias da Ásia – notadamente a Índia e os produtores de petróleo do
Golfo Pérsico – se tornaram faróis do crescimento econômico e dos investimentos globais.
A ascensão indiana ocupou data de décadas e representa a ascensão de uma grande potência com ambições globais. Já os membros da OPEP vivem uma inesperada bonança de hidrocarbonetos em meio a conflitos no Leste Europeu e na Palestina – alimentados por potências como a Rússia, o Irã, os EUA e a aliança militar OTAN.
O Coronavírus não marcou, porém, uma virada rumo a uma transição para economias sustentáveis. O fracasso das COPs realizadas desde 2020 veio junto com impasses no G-20 e na governança econômica internacional – âs voltas com escassez de commodities (petróleo, alimentos), economias superendividadas e espirais inflacionárias.
A pandemia sacudiu o mundo, mas não criou um mundo novo – um novo normal.
Os horrores do Coronavírus vieram acompanhados de nostalgia. Um mundo “menos globalizado”, “mais seguro” se tornou um desejo comum. Trazer de volta a Guerra Fria se tornou uma obsessão contemporânea – ainda que não vejamos mais conflitos nucleares entre duas superpotências ou uma competição econômica global entre capitalismo e socialismo.
Enquanto não voltamos ao passado, o presente da pandemia dificultou imaginar um futuro melhor. As feições das relações internacionais de 2024 guardam semelhanças com os dilemas de 2019, que se intensificaram. O futuro permanece incerto e a novas crises globalizadas nos aguardam. Professor de Relações Internacionais, Universidade Federal do Tocantins.
* Artigo de autoria de Carlos Frederico Pereira da Silva Gama – professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins