Jaime Cezário: Uma delirante Sapucaí, de Júlio Verne a Lampião… mas a Águia não voou!
Saudações amigos do samba e do Carnaval! Vamos continuar a nossa conversa sobre o Carnaval de 2023. Agora, vamos viajar naquilo que foi apresentado pelas escolas de samba nos quatro dias de desfiles, os resultados determinados pelo corpo de julgadores e a sensação despertada no público presente na Sapucaí. Antes de mais nada, agradecer à todos, […]
POR Jaime Cezário23/03/2023|15 min de leitura
Saudações amigos do samba e do Carnaval! Vamos continuar a nossa conversa sobre o Carnaval de 2023. Agora, vamos viajar naquilo que foi apresentado pelas escolas de samba nos quatro dias de desfiles, os resultados determinados pelo corpo de julgadores e a sensação despertada no público presente na Sapucaí.
Antes de mais nada, agradecer à todos, pela repercussão do meu texto anterior. Muitos gostaram, outros tantos não, mas volto a reafirmar que ali, quis enumerar fatos e não achismos. Quando são meus achismos, eu mesmo comento aqui. No texto em questão, os fatos relatados podem ser facilmente encontrados na internet ou no livro citado. Eu sei que, para mim, seria melhor ficar aqui alisando gelo e, simplesmente, falar que está tudo lindo e maravilhoso, como a grande maioria faz. Mas, sinceramente, não faz parte do meu perfil.
Vamos agora ao que todos amam, os desfiles, começando pela Série Ouro, que a cada ano fica mais forte com a presença de Escolas de Sambas tradicionais e, muitas delas, campeãs no Grupo Especial. Vou nesse texto evitar comentários críticos e pesados pois eu sei que magoam os que trabalham nas agremiações e os torcedores mais fervorosos.
No primeiro dia o destaque ficou, evidentemente, para a UPM, com seu enredo sobre a influência moura no Nordeste brasileiro. A sua apresentação mostrou sua opulência tradicional, sendo que já vimos ela mais rica, mas, mesmo assim, é sempre um ponto fora da curva nas apresentações. O detalhe deste enredo, que foi um belo achado, foi torná-lo cult demais. Nada de errado em relação a isso, apenas se distanciou de um entendimento mais fácil do povão que adora vibrar com suas apresentações.
No sábado o destaque absoluto ficou por conta da Unidos do Porto da Pedra. A escola trouxe, em minha humilde opinião, o melhor enredo desse Carnaval. Baseado no livro “A Invenção da Amazônia”, escrito pelo pai da ficção científica, Júlio Verne. O título do enredo; “A invenção da Amazônia: um delírio do imaginário de Júlio Verne”. Quem acompanhou minhas colunas, vai lembrar que sempre falei da minha expectativa sobre essa apresentação. Tinha muita preocupação que a parte plástica pudesse cair no óbvio, o famoso “mais do mesmo”. Mas o que você quer dizer com isso? Ver índios, fauna e flora de cabo a rabo nessa apresentação. Aqueles que conhecem a obra do escritor e já viram filmes baseados nos seus livros, devem ter notado o toque perceptível dessa inspiração. Outra coisa importante foi a exploração inicial da “Amazônia Andina”, para depois entrar na “Amazônia Brasileira”, algo inteligente que foi capaz de quebrar com a expectativa do referido óbvio. As fantasias estavam belas e com transparência de ideia, facilitando o seu entendimento. Nas alegorias você via aquele toque “julioverniano”. Um desfile que encheu os olhos e os corações de esperança, no sentido de que muitos percebam que ainda temos um universo mágico de temas para serem explorados pelas escolas de samba. Uma apresentação com o selo do tecnicamente perfeito, somado ao selo de encantador. Independente das minhas ligações afetivas com a comunidade da escola, assim como, sua diretoria, e sempre zelando por opiniões técnicas e isentas, afirmei após o término do segundo dia das apresentações que o “caneco” iria para as bandas de São Gonçalo. E foi! Parabenizo ao carnavalesco Mauro Quintaes pelo projeto criado. Muito bom ver um artista pensando em temas “fora da caixinha”. E pelo que já foi anunciado, veremos outro enredo fora do “mais do mesmo” para 2024. Só que agora, no Grupo Especial.
Vou me restringir a essas duas escolas, uma em cada dia, e que acabaram sendo campeã e vice. O restante da ordem de classificação, daria uma outra arrumação, e sei que isso ia gerar outro rebuliço. E como não sou julgador, estou aqui fazendo uma simples análise; vale aquilo que tá escrito! Afinal, esse é o nosso Carnaval!
Vamos agora partir para o Grupo Especial! E aí, amigos? Todos amaram o resultado? Complicado, eu sei, quase um ninho de vespas, mas vamos lá com tato e coragem.
Vou falar um pouquinho do que vimos e do seu resultado. Uma coisa espero que todos concordem comigo, foi um desfile em que não passou uma campeã arrebatadora, como em 2022. Escolas ricas, plasticamente bonitas, afinal, é um grupo que tem um belo aporte financeiro em termos de subvenção, apoios e patronatos, e isso foi visto no domingo e na segunda, com pequenas exceções. Espero que, para 2024, a Liesa permita a campeã de escolher o dia do seu desfile, pois não acho justo termos ela desfilando, usando o exemplo desse ano, como a segunda de domingo, como foi o caso da Grande Rio. A escola fez um bom desfile, uma expectativa enorme a aguardava, mas grandes expectativas vão ser sempre um problema, pois fica impossível de serem atendidas… E acabamos vendo isso! Somado a sua posição no desfile, quase não participa do sábado das campeãs. Se ela fosse a quarta ou quinta de segunda-feira, será que tiraria em sexto lugar? Vale a reflexão…
A escola que cantou, na minha opinião, o melhor samba deste Carnaval, foi a Estação Primeira de Mangueira. Animou a passarela contando a história do Carnaval de Rua da Bahia, fazendo um desfile correto. Esse desfile marcou a estreia dos seus carnavalescos na escola e no Grupo Especial: Annik Salmon e Guilherme Estevão. Apesar das notícias de ataques nas redes sociais de alguns torcedores raivosos, sobre a plástica apresentada em fantasias e alegorias, eles saíram ilesos, ao meu ver, trazendo a escola de volta em um quinto lugar no sábado das campeãs. Parabéns aos dois artistas! Quanto ao que foi visto e apresentado nas alegorias e alas, vimos, inicialmente, a presença muito forte da ancestralidade africana, para depois enveredar pelo tema central do enredo: O Carnaval de Rua Baiano. A Estação Primeira é um carrossel de emoções, não é a toa que é chamada de “a Maior Escola de Samba do Planeta”.
A Beija-Flor de Nilópolis trouxe o enredo “protesto”, que falava do fato histórico conhecido como Independência da Bahia. A expectativa era grande nos bastidores do Carnaval, muita gente a apontava como provável campeã. O enredo lembrava outros já trazidos por ela, que já tinham sido sucesso e obtido conquistas. Imagino que algumas coisas aconteceram nos bastidores da criação desse projeto, pois seu desfile começa com a exuberância do dourado e fantasias muitos suntuosas para falar de um povo simples e pobre, contando momentos de insurgências populares, como revolta dos Malês, a Cabanagem e revoltas indígenas.
Bom, tudo bem que a licença poética permite isso, claro, e esses movimentos merecem esse destaque dourado, sim, você está certo! O problema é que da metade para o final, tudo se transformou. O dourado desaparece e surge uma gama de outros materiais mais artesanais e alternativos, com fantasias e alegorias que não conversavam com a primeira metade da sua apresentação. Nessa parte tivemos alas com faixas e cartazes, lembrando uma passeata de rua. Isso deu a nítida sensação que foi um trabalho feito por dois profissionais distintos, cada qual assinando uma metade da escola.
No desfile, tivemos um princípio de incêndio no abre-alas, ainda na concentração, mas que rapidamente foi contornado, e a alegoria conseguiu entrar, apenas com uma parte, onde vinha o destaque central, queimada e com a ferragem a mostra. A escola quis inovar trazendo a cantora Ludmila em parceria com o Neguinho da Beija-flor, o que vocês acharam? Eu confesso que fiquei irritado em alguns momentos, principalmente nos gritos estridentes de “ordem” e outra palavra que me fugiu a mente que era cantado por ela. Mas, mesmo com tudo isso, conseguiu uma honrosa quarta colocação. Parabéns Nilópolis!
Agora vamos falar das três primeiras colocadas, aquelas que dividiram opiniões de analistas, críticos e torcida. Após o término dos desfiles na segunda-feira, Vila Isabel, Imperatriz e Viradouro dividiam opiniões. O “zunzunzun”era que a escola preferida pela maioria tinha sido a Vila Isabel. Eu, particularmente, sempre acreditei que a Vila poderia ser a grata surpresa desse desfile, com seu enredo despojado e festivo falando sobre as festas ao redor do mundo. Um enredo bem ao feitio do estilo do carnavalesco Paulo Barros. E nesse desfile, podemos observar um profissional mais amadurecido, deixando para trás aquele estilo repleto de coreografias nas alegorias.
Começando por um abre-alas que representava a “Festa para Deus Baco”, um verdadeiro bacanal de gente linda e despojada, mostrando belos corpos e esbanjando sensualidade, e quando o chafariz de vinho começou a jorrar e o carro mexer, parecia que essa energia tinha nos embriagados. A escola se apresentou em estado de festa, era notório que todos os componentes estavam felizes e cantando. O samba-enredo que foi tão criticado no antes, vou aqui cometer um perjúrio, me perdoem aos que ficarem sentidos pela afirmação, mas foi o que mais funcionou na Sapucaí. Público e escola interagiram de forma harmônica. Foi daqueles desfiles que você não quer que termine, foi divertido, rico, variado, belas fantasias e alegorias. Destaco o tripé de São Jorge combatendo o dragão, como a grande lembrança, dentre várias que poderia enumerar. Na apuração, claro que perdeu nota no samba-enredo, que foi tão combatido pelos profetas da sapiência carnavalesca. Os jurados, com certeza, acompanharam todos os comentários, e acabaram pesando a mão. Dessa forma, ficou cinco décimos atrás da campeã. Alô Vila isabel… foi lindo!
Outra escola a entrar suntuosa e magnífica, foi a Unidos do Viradouro. Um enredo feminino, onde a escola quis fazer uma canonização popular em plena Sapucaí de Rosa Maria. O enredo trouxe um resgate da personagem Rosa Maria Egipcíaca, mulher preta, escravizada na África e trazida para o Brasil. Aqui comeu o pão que o diabo amassou, e trás nos seus registros históricos a façanha de ser a primeira mulher preta a escrever um livro nesse país. Tudo foi mostrado lindamente, em belas alegorias e fantasias. O carnavalesco Tarcísio Zanon com sua equipe de arte, teve o requinte de usar um colorido que deu um toque feminino ao desfile, lindíssima sensibilidade! Mas o que faltou a Viradouro para levar esse título para Niterói? Apenas um décimo, e pasmem, foi retirado no quesito Bateria, que tem no comando um monstro sagrado do nosso Carnaval chamado mestre Ciça. Não sei se posso dizer que foi uma coragem ou uma maldade, mas retirou… A escola foi a última a se apresentar, já nas primeiras horas da terça-feira gorda. Fico aqui a pensar nos meus “achismos”, se ela tivesse um samba mais contundente e valente, daqueles que sacodem a Avenida, que fazem o povão cantar enlouquecidamente sem medo de ser feliz, talvez tudo pudesse ser diferente. O samba ganhou nota dez dos jurados, fez bem sua parte em termos de nota, mas seguiu esse modismo de ser quase uma oração de tão lindo! Mas vamos lá, oração não faz o sangue ferver e sim, sublimar ao encantamento apresentado. E foi isso que aconteceu, ficamos todos encantados e emocionados! E dessa forma, acabou conquistando o vice-campeonato!
A grande campeã foi a Rainha de Ramos: a Imperatriz Leopoldinense. A Imperatriz apostou suas fichas no carnavalesco Leandro Vieira, que trouxe uma nova temática para a escola seguindo uma linha popular. O enredo foi inspirado na cultura nordestina, em especial na literatura de Cordel, contando de forma divertida a história do Cangaceiro Lampião após sua morte. Segundo a narrativa, o “cabra” era tão ruim que não foi aceito em lugar algum, nem céu e nem no inferno. Assim, foi obrigado a vagar como alma penada pelos sertões, indo terminar nas artes, na música do Gonzagão, na poesia de Patativa do Assaré e na arte em barro do Mestre Vitalino. O enredo foi contado de forma clara em alegorias e fantasias. A Imperatriz não titubeou, fez uma apresentação, com toda certeza, em termos técnicos, da mais correta apresentada neste Carnaval. Foi perfeita. Desfilou numa posição estratégica, quarta escola do segundo dia, no olho do furacão. E aí amigos, a sensação que ficou após seu desfile terminar, era de aonde ela poderia perder pontos. Foi uma apresentação irrepreensível! Na apuração, foi visto que o corpo de julgadores também tinha visto aquilo que todos tinham observados, a impossibilidade de se tirar pontos da sua apresentação. Assim, num carnaval que não teve nenhuma escola de samba capaz de fazer o sangue do público ferver e ser ovacionada em sua apresentação, sagrou-se, com justiça, a grande Campeã do Carnaval de 2023! Parabéns Imperatriz Leopoldinense e a toda comunidade da Leopoldina, vocês foram perfeitos!
Agora, quero dedicar esse último momento do texto para falar das duas escolas de samba do bairro de Madureira: Império Serrano e Portela.
O Império Serrano abriu o domingo com um desfile que sonhava com um lugar ao sol, uma escola nove vezes campeã do Grupo Especial, que há tempos não chegava tão bem vestida e arrumada na Sapucaí. Digo a todos que o seu desfile fez muita gente acreditar que esse ano a “Serrinha” ia, enfim, permanecer no primeiro time, dessa festa que ajudou a construir, mas que infelizmente, acabou não acontecendo. Valeu Império Serrano!
E a centenária Portela? Ah, amigos, essa posso dizer que foi a escola da emoção no Carnaval 2023. Quanta expectativa e torcida envolvia esse desfile em homenagem aos seus cem anos! Lembro de comentar algumas vezes aqui, que se os carnavalescos acertassem a mão na criação plástica e não houvesse erros na sua apresentação, a escola seria uma das belas surpresas e, com certeza, ia postular um dos primeiros lugares. Seu desfile começou com a emoção lá no alto, coração pulsando forte, drones formando nomes dos baluartes no céu da Sapucaí, abre-alas impecável. Olha, você via nos componentes e na diretoria a emoção marejada nos olhos. Era de arrepiar, você precisava se conter para não entrar naquele transe de sensações. Confesso que não consegui. Amar o samba e o Carnaval e ver uma homenagem tão linda e merecida a essa senhora centenária, me desculpem os raivosos do samba, eu chorei!
Seu desfile iniciou de forma perfeita e parecia que não veríamos carros presos em viadutos como último Carnaval, ledo engano… O enredo tinha leitura fácil nas fantasias e alegorias, tudo ia muito bem, até a entrada do terceiro carro alegórico, que homenageava os “Carnavais de Guerra”. Desse momento em diante, o caos reinou. Esqueceram de fazer a manutenção da infraestrutura das alegorias, pelo visto, pois a alegoria não conseguia andar. Aí, aquele sonho bom, começou a desmoronar. Não houve jeito, nada conseguia fazer a alegoria andar, e com isso acontecendo, o trabalho de um ano em homenagem ao centenário da Águia de Madureira foi perdido diante de nossos olhos estupefatos. Aquele desfile que poderia ter sido o ponto alto da boa emoção do Carnaval 2023, terminou com gosto de luto e derrota para todos. Digo todos, porque amamos o samba e as escolas de samba, independente de bandeiras. Li coisas assustadoras sendo escritas na internet, ódio sendo destilados, quase uma inquisição, pessoas raivosas querendo eleger e queimar culpados numa fogueira.
Precisamos ter equilíbrio nessa hora, sei que falo de algo que envolve muita paixão, e paixão queima, arde, mas é preciso ter calma! Aos Portelenses, minha solidariedade e meu respeito! Vocês não foram os campeões da apuração da quarta-feira de cinzas, mas foram os Campeões da Emoção desse Carnaval! Haja Emoção!
E agora que tudo passou, um ciclo se fechou, 2024 está aí! Isso serve para todas que não conseguiram conquistar suas colocações sonhadas. Erros servem de amadurecimento, e isso nos melhora como profissionais, artistas e pessoas. Que venha o próximo Carnaval! Salve o Carnaval! Salve as Escolas de Samba!
Jaime Cezário é arquiteto urbanista, carnavalesco, professor e pesquisador de Carnaval.
Começou sua carreira como carnavalesco no ano de 1993, no Engenho da Rainha. Atuou em diversas escolas de samba do Rio de Janeiro, entre elas, a Estação Primeira de Mangueira, São Clemente, Caprichosos de Pilares, Paraíso do Tuiuti, Acadêmicos do Cubango, Leão de Nova Iguaçu e Unidos do Porto da Pedra. Fora do Rio, foi carnavalesco da Rouxinóis, da cidade de Uruguaiana, e União da Ilha da Magia, de Florianópolis.
Em 2007 e 2008 elaborou o trabalho de pesquisa que permitiu a declaração das escolas de samba que desfilam na cidade do Rio de Janeiro como Patrimônio Cultural Carioca, junto da Prefeitura do Rio de Janeiro e do IRPH, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade.
Em 2013, a fantasia da ala das baianas – criada por Jaime para o Carnaval de 2012 para a Acadêmicos do Cubango –, entrou para o acervo permanente do Museu de Arte Moderna de Iowa, no EUA.
Essa fantasia está exposta no setor dedicado as festas folclóricas da América Latina e representa o Carnaval das escolas de samba do Brasil. Esse feito fez de Jaime o primeiro carnavalesco a ter uma obra exposta em acervo permanente num museu internacional.
Crédito das fotos: divulgação
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do portal SRzd
Saudações amigos do samba e do Carnaval! Vamos continuar a nossa conversa sobre o Carnaval de 2023. Agora, vamos viajar naquilo que foi apresentado pelas escolas de samba nos quatro dias de desfiles, os resultados determinados pelo corpo de julgadores e a sensação despertada no público presente na Sapucaí.
Antes de mais nada, agradecer à todos, pela repercussão do meu texto anterior. Muitos gostaram, outros tantos não, mas volto a reafirmar que ali, quis enumerar fatos e não achismos. Quando são meus achismos, eu mesmo comento aqui. No texto em questão, os fatos relatados podem ser facilmente encontrados na internet ou no livro citado. Eu sei que, para mim, seria melhor ficar aqui alisando gelo e, simplesmente, falar que está tudo lindo e maravilhoso, como a grande maioria faz. Mas, sinceramente, não faz parte do meu perfil.
Vamos agora ao que todos amam, os desfiles, começando pela Série Ouro, que a cada ano fica mais forte com a presença de Escolas de Sambas tradicionais e, muitas delas, campeãs no Grupo Especial. Vou nesse texto evitar comentários críticos e pesados pois eu sei que magoam os que trabalham nas agremiações e os torcedores mais fervorosos.
No primeiro dia o destaque ficou, evidentemente, para a UPM, com seu enredo sobre a influência moura no Nordeste brasileiro. A sua apresentação mostrou sua opulência tradicional, sendo que já vimos ela mais rica, mas, mesmo assim, é sempre um ponto fora da curva nas apresentações. O detalhe deste enredo, que foi um belo achado, foi torná-lo cult demais. Nada de errado em relação a isso, apenas se distanciou de um entendimento mais fácil do povão que adora vibrar com suas apresentações.
No sábado o destaque absoluto ficou por conta da Unidos do Porto da Pedra. A escola trouxe, em minha humilde opinião, o melhor enredo desse Carnaval. Baseado no livro “A Invenção da Amazônia”, escrito pelo pai da ficção científica, Júlio Verne. O título do enredo; “A invenção da Amazônia: um delírio do imaginário de Júlio Verne”. Quem acompanhou minhas colunas, vai lembrar que sempre falei da minha expectativa sobre essa apresentação. Tinha muita preocupação que a parte plástica pudesse cair no óbvio, o famoso “mais do mesmo”. Mas o que você quer dizer com isso? Ver índios, fauna e flora de cabo a rabo nessa apresentação. Aqueles que conhecem a obra do escritor e já viram filmes baseados nos seus livros, devem ter notado o toque perceptível dessa inspiração. Outra coisa importante foi a exploração inicial da “Amazônia Andina”, para depois entrar na “Amazônia Brasileira”, algo inteligente que foi capaz de quebrar com a expectativa do referido óbvio. As fantasias estavam belas e com transparência de ideia, facilitando o seu entendimento. Nas alegorias você via aquele toque “julioverniano”. Um desfile que encheu os olhos e os corações de esperança, no sentido de que muitos percebam que ainda temos um universo mágico de temas para serem explorados pelas escolas de samba. Uma apresentação com o selo do tecnicamente perfeito, somado ao selo de encantador. Independente das minhas ligações afetivas com a comunidade da escola, assim como, sua diretoria, e sempre zelando por opiniões técnicas e isentas, afirmei após o término do segundo dia das apresentações que o “caneco” iria para as bandas de São Gonçalo. E foi! Parabenizo ao carnavalesco Mauro Quintaes pelo projeto criado. Muito bom ver um artista pensando em temas “fora da caixinha”. E pelo que já foi anunciado, veremos outro enredo fora do “mais do mesmo” para 2024. Só que agora, no Grupo Especial.
Vou me restringir a essas duas escolas, uma em cada dia, e que acabaram sendo campeã e vice. O restante da ordem de classificação, daria uma outra arrumação, e sei que isso ia gerar outro rebuliço. E como não sou julgador, estou aqui fazendo uma simples análise; vale aquilo que tá escrito! Afinal, esse é o nosso Carnaval!
Vamos agora partir para o Grupo Especial! E aí, amigos? Todos amaram o resultado? Complicado, eu sei, quase um ninho de vespas, mas vamos lá com tato e coragem.
Vou falar um pouquinho do que vimos e do seu resultado. Uma coisa espero que todos concordem comigo, foi um desfile em que não passou uma campeã arrebatadora, como em 2022. Escolas ricas, plasticamente bonitas, afinal, é um grupo que tem um belo aporte financeiro em termos de subvenção, apoios e patronatos, e isso foi visto no domingo e na segunda, com pequenas exceções. Espero que, para 2024, a Liesa permita a campeã de escolher o dia do seu desfile, pois não acho justo termos ela desfilando, usando o exemplo desse ano, como a segunda de domingo, como foi o caso da Grande Rio. A escola fez um bom desfile, uma expectativa enorme a aguardava, mas grandes expectativas vão ser sempre um problema, pois fica impossível de serem atendidas… E acabamos vendo isso! Somado a sua posição no desfile, quase não participa do sábado das campeãs. Se ela fosse a quarta ou quinta de segunda-feira, será que tiraria em sexto lugar? Vale a reflexão…
A escola que cantou, na minha opinião, o melhor samba deste Carnaval, foi a Estação Primeira de Mangueira. Animou a passarela contando a história do Carnaval de Rua da Bahia, fazendo um desfile correto. Esse desfile marcou a estreia dos seus carnavalescos na escola e no Grupo Especial: Annik Salmon e Guilherme Estevão. Apesar das notícias de ataques nas redes sociais de alguns torcedores raivosos, sobre a plástica apresentada em fantasias e alegorias, eles saíram ilesos, ao meu ver, trazendo a escola de volta em um quinto lugar no sábado das campeãs. Parabéns aos dois artistas! Quanto ao que foi visto e apresentado nas alegorias e alas, vimos, inicialmente, a presença muito forte da ancestralidade africana, para depois enveredar pelo tema central do enredo: O Carnaval de Rua Baiano. A Estação Primeira é um carrossel de emoções, não é a toa que é chamada de “a Maior Escola de Samba do Planeta”.
A Beija-Flor de Nilópolis trouxe o enredo “protesto”, que falava do fato histórico conhecido como Independência da Bahia. A expectativa era grande nos bastidores do Carnaval, muita gente a apontava como provável campeã. O enredo lembrava outros já trazidos por ela, que já tinham sido sucesso e obtido conquistas. Imagino que algumas coisas aconteceram nos bastidores da criação desse projeto, pois seu desfile começa com a exuberância do dourado e fantasias muitos suntuosas para falar de um povo simples e pobre, contando momentos de insurgências populares, como revolta dos Malês, a Cabanagem e revoltas indígenas.
Bom, tudo bem que a licença poética permite isso, claro, e esses movimentos merecem esse destaque dourado, sim, você está certo! O problema é que da metade para o final, tudo se transformou. O dourado desaparece e surge uma gama de outros materiais mais artesanais e alternativos, com fantasias e alegorias que não conversavam com a primeira metade da sua apresentação. Nessa parte tivemos alas com faixas e cartazes, lembrando uma passeata de rua. Isso deu a nítida sensação que foi um trabalho feito por dois profissionais distintos, cada qual assinando uma metade da escola.
No desfile, tivemos um princípio de incêndio no abre-alas, ainda na concentração, mas que rapidamente foi contornado, e a alegoria conseguiu entrar, apenas com uma parte, onde vinha o destaque central, queimada e com a ferragem a mostra. A escola quis inovar trazendo a cantora Ludmila em parceria com o Neguinho da Beija-flor, o que vocês acharam? Eu confesso que fiquei irritado em alguns momentos, principalmente nos gritos estridentes de “ordem” e outra palavra que me fugiu a mente que era cantado por ela. Mas, mesmo com tudo isso, conseguiu uma honrosa quarta colocação. Parabéns Nilópolis!
Agora vamos falar das três primeiras colocadas, aquelas que dividiram opiniões de analistas, críticos e torcida. Após o término dos desfiles na segunda-feira, Vila Isabel, Imperatriz e Viradouro dividiam opiniões. O “zunzunzun”era que a escola preferida pela maioria tinha sido a Vila Isabel. Eu, particularmente, sempre acreditei que a Vila poderia ser a grata surpresa desse desfile, com seu enredo despojado e festivo falando sobre as festas ao redor do mundo. Um enredo bem ao feitio do estilo do carnavalesco Paulo Barros. E nesse desfile, podemos observar um profissional mais amadurecido, deixando para trás aquele estilo repleto de coreografias nas alegorias.
Começando por um abre-alas que representava a “Festa para Deus Baco”, um verdadeiro bacanal de gente linda e despojada, mostrando belos corpos e esbanjando sensualidade, e quando o chafariz de vinho começou a jorrar e o carro mexer, parecia que essa energia tinha nos embriagados. A escola se apresentou em estado de festa, era notório que todos os componentes estavam felizes e cantando. O samba-enredo que foi tão criticado no antes, vou aqui cometer um perjúrio, me perdoem aos que ficarem sentidos pela afirmação, mas foi o que mais funcionou na Sapucaí. Público e escola interagiram de forma harmônica. Foi daqueles desfiles que você não quer que termine, foi divertido, rico, variado, belas fantasias e alegorias. Destaco o tripé de São Jorge combatendo o dragão, como a grande lembrança, dentre várias que poderia enumerar. Na apuração, claro que perdeu nota no samba-enredo, que foi tão combatido pelos profetas da sapiência carnavalesca. Os jurados, com certeza, acompanharam todos os comentários, e acabaram pesando a mão. Dessa forma, ficou cinco décimos atrás da campeã. Alô Vila isabel… foi lindo!
Outra escola a entrar suntuosa e magnífica, foi a Unidos do Viradouro. Um enredo feminino, onde a escola quis fazer uma canonização popular em plena Sapucaí de Rosa Maria. O enredo trouxe um resgate da personagem Rosa Maria Egipcíaca, mulher preta, escravizada na África e trazida para o Brasil. Aqui comeu o pão que o diabo amassou, e trás nos seus registros históricos a façanha de ser a primeira mulher preta a escrever um livro nesse país. Tudo foi mostrado lindamente, em belas alegorias e fantasias. O carnavalesco Tarcísio Zanon com sua equipe de arte, teve o requinte de usar um colorido que deu um toque feminino ao desfile, lindíssima sensibilidade! Mas o que faltou a Viradouro para levar esse título para Niterói? Apenas um décimo, e pasmem, foi retirado no quesito Bateria, que tem no comando um monstro sagrado do nosso Carnaval chamado mestre Ciça. Não sei se posso dizer que foi uma coragem ou uma maldade, mas retirou… A escola foi a última a se apresentar, já nas primeiras horas da terça-feira gorda. Fico aqui a pensar nos meus “achismos”, se ela tivesse um samba mais contundente e valente, daqueles que sacodem a Avenida, que fazem o povão cantar enlouquecidamente sem medo de ser feliz, talvez tudo pudesse ser diferente. O samba ganhou nota dez dos jurados, fez bem sua parte em termos de nota, mas seguiu esse modismo de ser quase uma oração de tão lindo! Mas vamos lá, oração não faz o sangue ferver e sim, sublimar ao encantamento apresentado. E foi isso que aconteceu, ficamos todos encantados e emocionados! E dessa forma, acabou conquistando o vice-campeonato!
A grande campeã foi a Rainha de Ramos: a Imperatriz Leopoldinense. A Imperatriz apostou suas fichas no carnavalesco Leandro Vieira, que trouxe uma nova temática para a escola seguindo uma linha popular. O enredo foi inspirado na cultura nordestina, em especial na literatura de Cordel, contando de forma divertida a história do Cangaceiro Lampião após sua morte. Segundo a narrativa, o “cabra” era tão ruim que não foi aceito em lugar algum, nem céu e nem no inferno. Assim, foi obrigado a vagar como alma penada pelos sertões, indo terminar nas artes, na música do Gonzagão, na poesia de Patativa do Assaré e na arte em barro do Mestre Vitalino. O enredo foi contado de forma clara em alegorias e fantasias. A Imperatriz não titubeou, fez uma apresentação, com toda certeza, em termos técnicos, da mais correta apresentada neste Carnaval. Foi perfeita. Desfilou numa posição estratégica, quarta escola do segundo dia, no olho do furacão. E aí amigos, a sensação que ficou após seu desfile terminar, era de aonde ela poderia perder pontos. Foi uma apresentação irrepreensível! Na apuração, foi visto que o corpo de julgadores também tinha visto aquilo que todos tinham observados, a impossibilidade de se tirar pontos da sua apresentação. Assim, num carnaval que não teve nenhuma escola de samba capaz de fazer o sangue do público ferver e ser ovacionada em sua apresentação, sagrou-se, com justiça, a grande Campeã do Carnaval de 2023! Parabéns Imperatriz Leopoldinense e a toda comunidade da Leopoldina, vocês foram perfeitos!
Agora, quero dedicar esse último momento do texto para falar das duas escolas de samba do bairro de Madureira: Império Serrano e Portela.
O Império Serrano abriu o domingo com um desfile que sonhava com um lugar ao sol, uma escola nove vezes campeã do Grupo Especial, que há tempos não chegava tão bem vestida e arrumada na Sapucaí. Digo a todos que o seu desfile fez muita gente acreditar que esse ano a “Serrinha” ia, enfim, permanecer no primeiro time, dessa festa que ajudou a construir, mas que infelizmente, acabou não acontecendo. Valeu Império Serrano!
E a centenária Portela? Ah, amigos, essa posso dizer que foi a escola da emoção no Carnaval 2023. Quanta expectativa e torcida envolvia esse desfile em homenagem aos seus cem anos! Lembro de comentar algumas vezes aqui, que se os carnavalescos acertassem a mão na criação plástica e não houvesse erros na sua apresentação, a escola seria uma das belas surpresas e, com certeza, ia postular um dos primeiros lugares. Seu desfile começou com a emoção lá no alto, coração pulsando forte, drones formando nomes dos baluartes no céu da Sapucaí, abre-alas impecável. Olha, você via nos componentes e na diretoria a emoção marejada nos olhos. Era de arrepiar, você precisava se conter para não entrar naquele transe de sensações. Confesso que não consegui. Amar o samba e o Carnaval e ver uma homenagem tão linda e merecida a essa senhora centenária, me desculpem os raivosos do samba, eu chorei!
Seu desfile iniciou de forma perfeita e parecia que não veríamos carros presos em viadutos como último Carnaval, ledo engano… O enredo tinha leitura fácil nas fantasias e alegorias, tudo ia muito bem, até a entrada do terceiro carro alegórico, que homenageava os “Carnavais de Guerra”. Desse momento em diante, o caos reinou. Esqueceram de fazer a manutenção da infraestrutura das alegorias, pelo visto, pois a alegoria não conseguia andar. Aí, aquele sonho bom, começou a desmoronar. Não houve jeito, nada conseguia fazer a alegoria andar, e com isso acontecendo, o trabalho de um ano em homenagem ao centenário da Águia de Madureira foi perdido diante de nossos olhos estupefatos. Aquele desfile que poderia ter sido o ponto alto da boa emoção do Carnaval 2023, terminou com gosto de luto e derrota para todos. Digo todos, porque amamos o samba e as escolas de samba, independente de bandeiras. Li coisas assustadoras sendo escritas na internet, ódio sendo destilados, quase uma inquisição, pessoas raivosas querendo eleger e queimar culpados numa fogueira.
Precisamos ter equilíbrio nessa hora, sei que falo de algo que envolve muita paixão, e paixão queima, arde, mas é preciso ter calma! Aos Portelenses, minha solidariedade e meu respeito! Vocês não foram os campeões da apuração da quarta-feira de cinzas, mas foram os Campeões da Emoção desse Carnaval! Haja Emoção!
E agora que tudo passou, um ciclo se fechou, 2024 está aí! Isso serve para todas que não conseguiram conquistar suas colocações sonhadas. Erros servem de amadurecimento, e isso nos melhora como profissionais, artistas e pessoas. Que venha o próximo Carnaval! Salve o Carnaval! Salve as Escolas de Samba!
Jaime Cezário é arquiteto urbanista, carnavalesco, professor e pesquisador de Carnaval.
Começou sua carreira como carnavalesco no ano de 1993, no Engenho da Rainha. Atuou em diversas escolas de samba do Rio de Janeiro, entre elas, a Estação Primeira de Mangueira, São Clemente, Caprichosos de Pilares, Paraíso do Tuiuti, Acadêmicos do Cubango, Leão de Nova Iguaçu e Unidos do Porto da Pedra. Fora do Rio, foi carnavalesco da Rouxinóis, da cidade de Uruguaiana, e União da Ilha da Magia, de Florianópolis.
Em 2007 e 2008 elaborou o trabalho de pesquisa que permitiu a declaração das escolas de samba que desfilam na cidade do Rio de Janeiro como Patrimônio Cultural Carioca, junto da Prefeitura do Rio de Janeiro e do IRPH, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade.
Em 2013, a fantasia da ala das baianas – criada por Jaime para o Carnaval de 2012 para a Acadêmicos do Cubango –, entrou para o acervo permanente do Museu de Arte Moderna de Iowa, no EUA.
Essa fantasia está exposta no setor dedicado as festas folclóricas da América Latina e representa o Carnaval das escolas de samba do Brasil. Esse feito fez de Jaime o primeiro carnavalesco a ter uma obra exposta em acervo permanente num museu internacional.
Crédito das fotos: divulgação
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