Há alguns anos, a preocupação da indústria cinematográfica hollywoodiana era, basicamente, fugir de polêmicas que pudessem, de alguma maneira, afetar o resultado de seus produtos nas bilheterias. Isto inclui escândalos de cunho pessoal envolvendo realizadores e atores, bem como a falta de diversidade e representatividade nos filmes, discussão esta que ganhou força desde o Oscar […]
POR Ana Carolina Garcia20/12/2020|17 min de leitura
Há alguns anos, a preocupação da indústria cinematográfica hollywoodiana era, basicamente, fugir de polêmicas que pudessem, de alguma maneira, afetar o resultado de seus produtos nas bilheterias. Isto inclui escândalos de cunho pessoal envolvendo realizadores e atores, bem como a falta de diversidade e representatividade nos filmes, discussão esta que ganhou força desde o Oscar 2016, chamado de #OscarSoWhite (“Oscar tão branco”, numa tradução literal). A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (Academy of Motion Picture Arts and Sciences – AMPAS) saiu do olho do furacão este ano em parte graças à vitória de “Parasita” (Gisaenchung – 2019, Coreia do Sul), primeiro longa em língua não-inglesa a vencer a estatueta de melhor filme, e, principalmente, por uma situação que poucas semanas depois da cerimônia ganhou proporções outrora pensadas apenas nos livros e/ou nas telas de cinema.
2020 começou como um ano promissor para a indústria, que ainda colhia os frutos de 2019, marcado, entre outras coisas, pela arrecadação recorde de US$ 42,5 bilhões ao redor do globo, segundo a Comscore, e pela chegada de um novo campeão de bilheteria, “Vingadores: Ultimato” (Avengers: Endgame – 2019). Dirigido pelos irmãos Anthony e Joe Russo, a produção do Universo Cinematográfico da Marvel (UCM) arrecadou US$ 2,797 bilhões em todo o mundo, de acordo com o Box Office Mojo, tornando-se o filme mais lucrativo da História, desbancando “Avatar” (Idem – 2009), de James Cameron, que ocupou a primeira posição do ranking por 10 anos com US$ 2,790 bilhões. Contudo, logo em suas primeiras semanas, notícias sobre um vírus altamente contagioso e agressivo, originário da China, começaram a desenhar um cenário de medo, insegurança e incerteza. Pouco tempo depois, o novo coronavírus já havia se espalhado pelo planeta, levando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar pandemia em março. A Covid-19 parou o mundo e deixou de ser uma crise apenas sanitária para se tornar, também, econômica e humanitária.
A pandemia atingiu em cheio o cinema, interrompendo todas as suas atividades por longo período, tanto nos centros de produção quanto nas salas de exibição, necessárias para a obtenção do lucro responsável por manter as engrenagens da indústria funcionando. Nem mesmo durante a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), quando os mercados europeus e asiáticos foram diretamente impactados pelo conflito, obrigando Hollywood a olhar para a América Latina, no movimento conhecido como “política da boa vizinhança”, as salas haviam sido fechadas em larga escala – muitas delas ainda seguem fechadas, inclusive em Los Angeles e Nova York, os principais mercados dos Estados Unidos. E, ao invés da corrida por filmes aguardados, adiamentos constantes e demissões em massa nos estúdios – dentre os filmes adiados, títulos de grande apelo popular, como “Um Lugar Silencioso – Parte II” (A Quiet Place 2 – 2021), “Velozes & Furiosos 9” (F9 – 2021), “007 – Sem Tempo Para Morrer” (No Time to Die – 2021), “Viúva Negra” (Black Widow – 2021) e “Top Gun: Maverick” (Idem – 2021). Com a estrutura abalada, Hollywood tem de lidar com as consequências da pandemia num processo gradativo, baseado no “um problema por vez”, enquanto assiste ao fortalecimento das plataformas de streaming.
Neste contexto de salas fechadas, a Universal Studios causou um terremoto na capital do cinema ao anunciar o lançamento simultâneo de “Trolls 2” (Trolls World Tour – 2020) no circuito comercial e em PVOD, nos Estados Unidos, quebrando a janela de exibição tradicional, que estabelece o intervalo de 70 a 90 dias entre a estreia no circuito e a disponibilização em plataformas digitais e VOD. A decisão do estúdio despertou a ira de exibidores, que ameaçaram boicotar suas produções, inclusive a Regal e a AMC Theatres, duas das maiores redes de cinema do mundo. Mas, como o dinheiro fala mais alto, a AMC, sob a ameaça da falência, selou um acordo polêmico com a outrora criticada Universal que prevê a diminuição da janela de exibição para 17 dias e garante à AMC 10% do lucro do aluguel de cada filme em PVOD, segundo o The Hollywood Reporter – estúdios, distribuidores e exibidores consideram os três primeiros finais de semana o período mais rentável e, por esta razão, a Universal e a AMC decidiram encurtar a janela de maneira a preservá-lo.
De acordo com a Variety à época, a AMC intencionava contratos semelhantes ao da Universal, mas por valores superiores, recebendo 20% da renda dos aluguéis dos filmes dos outros estúdios e anuidade de cerca de US$ 2 milhões referentes à publicidade, além de pagar a eles menos 2% da receita dos títulos exibidos em suas salas. Ou seja, para lançarem em PVOD longas-metragens poucos dias após suas respectivas estreias no circuito, os estúdios terão de disponibilizar 52% da arrecadação de cada um deles para a AMC. No entanto, a rede de cinema não obteve o êxito desejado, principalmente com a Disney, estúdio mais lucrativo da atualidade, que lançou parte do catálogo deste ano em sua plataforma digital, a Disney+, que chegou à América Latina em 17 de novembro.
A situação que já estava conturbada ficou caótica no início deste mês, quando a Warner Bros. quebrou de vez a janela de exibição tradicional sob o pretexto da pandemia, afirmando, segundo o The Hollywood Reporter, que os 17 títulos agendados para este ano e o próximo serão lançados no mesmo “dia e data” no circuito comercial e no streaming, onde serão disponibilizados na HBO Max, ativa somente nos Estados Unidos, mas com previsão de chegada na Europa e América Latina até o final de 2021. Entre eles, “Mulher-Maravilha 1984” (Wonder Woman 1984 – 2020), “Duna” (Dune – 2021), “Matrix 4” (The Matrix 4- 2021), “Space Jam: A New Legacy” (Idem – 2021) e “Esquadrão Suicida” (The Suicide Squad – 2021).
“Ninguém deseja que os filmes voltem às telas mais do que nós. Sabemos que o novo conteúdo é a força vital da exibição teatral, mas temos que equilibrar isso com a realidade de que a maioria dos cinemas nos Estados Unidos provavelmente operará com capacidade reduzida ao longo de 2021. Com este plano único de um ano, podemos apoiar nossos parceiros na exibição com um fluxo constante de filmes de classe mundial, ao mesmo tempo dando aos cinéfilos que podem não ter acesso aos cinemas, ou não estão prontos para voltar, a chance de ver nossos incríveis filmes de 2021. Vemos isso como uma vitória para os amantes do cinema e exibidores, e estamos extremamente gratos aos nossos parceiros de cinema por trabalharem conosco nesta resposta inovadora a essas circunstâncias”, disse Ann Sarnoff, CEO da WarnerMedia Studios and Network Group, em comunicado oficial à imprensa. “Depois de considerar todas as opções disponíveis e o estado projetado da ida ao cinema ao longo de 2021, chegamos à conclusão de que esta era a melhor maneira para o setor cinematográfico da WarnerMedia navegar nos próximos 12 meses. Mais importante, estamos planejando trazer aos consumidores 17 filmes notáveis ao longo do ano, dando a eles a escolha e o poder de decidir como desejam assistir a esses filmes. Nosso conteúdo é extremamente valioso, a menos que esteja em uma prateleira sem ser visto por ninguém. Acreditamos que essa abordagem atende aos nossos fãs, apoia exibidores e cineastas e aprimora a experiência da HBO Max, criando valor para todos”, complementou Jason Killar, CEO da WarnerMedia, também em comunicado oficial.
Considerada uma jogada para promover a HBO Max dentro e fora dos Estados Unidos, a decisão da Warner foi anunciada poucos dias após a confirmação da estreia simultânea de “Mulher-Maravilha 1984” no mercado americano, algo que não criou tanta turbulência por se tratar de um filme específico no momento no qual o público precisa de entretenimento, ao menos a fatia que segue as orientações de isolamento e distanciamento da OMS, e contou com a anuência da AMC. No entanto, despertou a ira dos exibidores, que enfrentam a forte crise econômica e sentiram o impacto até mesmo na Bolsa de Valores, e de figurões do cinema hollywoodiano, inclusive contratados pelo próprio estúdio, como Denis Villeneuve, de “Duna”, e Christopher Nolan, de “Tenet” (Idem – 2021). E foi “Tenet” a produção que mais contribuiu para esta decisão. Considerado a salvação do circuito antes de sua estreia, precoce em tempos de pandemia por pressão do próprio cineasta, o longa se tornou fracasso de bilheteria no mercado americano, faturando apenas US$ 57,8 milhões – globalmente, a ficção-científica estrelada por Robert Pattinson e John David Washington soma US$ 361,4 milhões até o momento.
Indignado, Nolan disse em recente entrevista a Ari Shapiro que a exibição nas salas é apenas uma parte da indústria cinematográfica, e que é muito importante para “a economia da empresa e para as pessoas que nela trabalham. E eu não estou falando sobre mim. Eu não estou falando sobre Ben Affleck”. O cineasta expressou sua preocupação para com profissionais de diversas áreas que compõem a produção cinematográfica que dependem do trabalho para sobreviver e, portanto, estão em perigo devido à decisão, chamada por ele de “alavanca para uma estratégia de negócios diferente, sem primeiro descobrir como essas novas estruturas terão de funcionar”. “Há um perigo nisso que precisa ser tratado por meio de negociações adequadas com os sindicatos, com os profissionais e tudo mais. Há um número enorme de perguntas que surgem disso sobre as estruturas econômicas que permitem aos trabalhadores em Hollywood manterem, você sabe, suas vidas e criarem suas famílias e terem cuidados de saúde e tudo mais. E estou dizendo que essas são coisas que ainda não foram pensadas e precisam ser”, complementou Nolan.
Esta é a mesma preocupação externada por Tom Cruise durante discurso furioso no set de “Missão: Impossível 7” (Mission: Impossible 7 – 2021), cujo áudio foi divulgado na última semana pelo The Sun. Um dos poucos filmes a seguir com o cronograma de filmagens após interrupções impostas pelo lockdown na Europa e por membros infectados na equipe, o longa tem seguido à risca o protocolo de segurança exigido pela Covid-19 e é considerado modelo para a Paramount Pictures e outros estúdios. No áudio, Cruise, que é um dos produtores do filme e, portanto, responsável pela segurança de todos no set, ameaça dois de seus funcionários de demissão por, supostamente, estarem posicionados a menos dos dois metros de distância recomendados pela OMS, deixando nítida toda a pressão causada pelo novo coronavírus ao indivíduo.
“Nós somos de alto padrão! Eles voltaram a filmar em Hollywood por nossa causa! Eles acreditam em nós e no que fazemos! Eu fico ao telefone a noite toda com estúdios, companhias de seguros, produtores, e eles olham para o que nós estamos fazendo, estamos criando milhares de empregos! Não quero mais ver isso (desrespeito ao protocolo de segurança) de novo nunca mais!”, esbravejou Cruise, lembrando a todos, por vezes usando palavrões, que existe a possibilidade de novos adiamentos e/ou cancelamentos caso a pandemia não seja controlada, complementando: “E se não fizerem, vocês estão demitidos! Sem desculpas. Vocês podem pedir desculpas para as pessoas que estão perdendo suas casas porque a indústria está fechada. Não estão colocando comida na mesa, não estão pagando pela educação dos seus filhos. E é com isso que eu durmo toda noite, o futuro desta indústria!”.
Não há como negar que o desabafo do maior astro do cinema contemporâneo é o mesmo entalado na garganta de muitas outras pessoas mundo afora, emocionalmente desgastadas. Apesar disso, a postura de Tom Cruise dividiu opiniões, sobretudo pelos gritos e uso de palavrões. “Algumas pessoas não entendem por que ele ficou tão bravo. Eu entendi. Você sabe, esse é o filme dele. E se ele adoecer com COVID, o filme está encerrado. Já se passaram cinco, seis semanas. Você pode continuar, você pode conseguir um novo operador de câmera – sem desrespeito aos operadores de câmera – você pode conseguir um novo operador de som, mas você não pode conseguir outro Tom Cruise. E se ele está olhando e pode ver que você não está fazendo o que deveria estar fazendo, é como se fosse um dedo do meio, na minha opinião”, defendeu Whoopi Goldberg em seu programa, “The View” (Idem – desde 1997).
“Ele não reagiu exageradamente porque isso é mesmo um problema. Eu tenho um amigo que é assistente de direção em outro programa de TV que teve quase exatamente a mesma situação acontecendo sem uma resposta tão ampla… Você está em uma posição de poder e é complicado. Você tem responsabilidade por todos os outros e ele está absolutamente certo sobre isso. Se a produção cair, muitas pessoas perderão seus empregos. As pessoas precisam entender isso e ser responsáveis. Não é meu estilo, você sabe, falar com todo mundo dessa maneira. Eu acho que não ajuda necessariamente apontar para pessoas específicas dessa forma e fazer isso… mas, você sabe, todo mundo tem seu próprio estilo. As pessoas que participaram da filmagem nos contarão mais sobre isso. Eu entendo o porquê de ele ter feito isso. Ele não está errado sobre isso. Você sabe, eu só, eu não sei se eu teria feito isso pessoalmente, mas não sei todas as circunstâncias, então talvez ele tenha feito isso 10 ou 15 vezes antes”, disse George Clooney em entrevista a Howard Stern.
Considerado exemplo de profissional meticuloso, Tom Cruise tem lutado para manter as engrenagens funcionando em meio ao caos da Covid-19, mas com segurança. Sua bronca levou à demissão voluntária de alguns membros da equipe após o vazamento do áudio pelo The Sun, o que fez crescer a tensão no set num momento difícil para todos, sobretudo aqueles afetados diretamente pela pandemia. Porém, os gritos do astro demonstram seu senso de responsabilidade para com a equipe e a própria indústria que vive uma fase de mudança estrutural que impõe transformações no modus operandi dos estúdios tradicionais que precisam brigar por sua permanência na capital do cinema enquanto assistem a ascensão de produções originais da Netflix, Amazon Prime Video, Apple TV, entre outras.
Esta mudança de hábitos de consumo se acelerou durante a pandemia, mas isto será o suficiente para enterrar o modelo tradicional de cinema, calcado na experiência proporcionada pelas salas de exibição, locais historicamente de socialização? Num cenário pandêmico sem vacinação em massa, ou seja, temporariamente, até pode. Mas, e quando a vida voltar ao normal e as pessoas se sentirem seguras para retomarem suas atividades cotidianas? Provavelmente, não. Isto se deve ao fato de parte do público estar exausta do confinamento necessário para a contenção do novo coronavírus – exceto aqueles que agem como se a Covid-19 não existisse e continuam ignorando a crise sanitária, impedindo a recuperação econômica e agravando a humanitária.
Neste ponto, contudo, é importante ressaltar que a diminuição ou a quebra total da janela tradicional de exibição poderá ser maléfica a longo prazo, pois a pandemia de Covid-19, felizmente, não durará para sempre. Com isso, o impacto financeiro tanto do acordo histórico entre a Universal Pictures e a AMC Theatres quanto da polêmica decisão Warner Bros. será sentido pela indústria, que precisa do lucro proveniente das bilheterias para manter suas engrenagens funcionando, inclusive para posterior investimento em novos projetos, muitos deles dependentes de avanços tecnológicos que necessitam de orçamentos consideráveis. Há muito a ser ponderado por ambos os lados, pois se a indústria, e até mesmo algumas redes, sentir em cifras, muitos empregos serão afetados, entre eles, os que têm sido poupados em meio à atual crise.
O cinema sobreviveu à televisão, à pirataria e, também, sobreviverá ao streaming, pois são muitos os filmes que necessitam da tela grande para impactar o espectador e conquistar seu espaço na História da sétima-arte. Apesar da ameaça constante, este meio de comunicação de massa tem condições suficientes para se reinventar e reerguer, atraindo o público ávido pela liberdade e segurança existentes na Era pré-Covid. No entanto, o caminho até lá será árduo, principalmente no próximo ano, pois a reabertura total das salas depende do controle da pandemia e sua recuperação financeira depende dos espectadores, boa parte deles ainda com medo, pois as salas são locais fechados e propícios à disseminação do novo coronavírus. Além disso, Hollywood começará 2021 ainda sob o baque da baixa arrecadação de 2020, cerca de 80% menor que a de 2019, segundo projeções do Comscore, a pior das últimas quatro décadas e que não se agravou ainda mais graças ao mercado asiático, que conseguiu se manter em meio ao caos.
Fatigado, 2020 chega ao fim como um dos difíceis da História, deixando o gosto amargo dos horrores causados pela Covid-19, sobretudo para as famílias afetadas, muitas delas, infelizmente, lidando com o luto de perdas irreparáveis. No entanto, o medo e a insegurança deste cenário incerto começam a conceder espaço para a esperança em forma de vacina. E será a tão sonhada e desejada vacina, já aplicada em alguns países, a responsável por colocar a vida e a economia nos eixos, possibilitando, nos próximos meses, o retorno gradual e seguro às atividades cotidianas, inclusive nos centros de produção e salas de exibição, que precisaram adotar protocolos de segurança, alguns dispendiosos, para continuarem funcionando nas cidades nas quais estão autorizados, dentro e fora dos Estados Unidos.
Há alguns anos, a preocupação da indústria cinematográfica hollywoodiana era, basicamente, fugir de polêmicas que pudessem, de alguma maneira, afetar o resultado de seus produtos nas bilheterias. Isto inclui escândalos de cunho pessoal envolvendo realizadores e atores, bem como a falta de diversidade e representatividade nos filmes, discussão esta que ganhou força desde o Oscar 2016, chamado de #OscarSoWhite (“Oscar tão branco”, numa tradução literal). A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (Academy of Motion Picture Arts and Sciences – AMPAS) saiu do olho do furacão este ano em parte graças à vitória de “Parasita” (Gisaenchung – 2019, Coreia do Sul), primeiro longa em língua não-inglesa a vencer a estatueta de melhor filme, e, principalmente, por uma situação que poucas semanas depois da cerimônia ganhou proporções outrora pensadas apenas nos livros e/ou nas telas de cinema.
2020 começou como um ano promissor para a indústria, que ainda colhia os frutos de 2019, marcado, entre outras coisas, pela arrecadação recorde de US$ 42,5 bilhões ao redor do globo, segundo a Comscore, e pela chegada de um novo campeão de bilheteria, “Vingadores: Ultimato” (Avengers: Endgame – 2019). Dirigido pelos irmãos Anthony e Joe Russo, a produção do Universo Cinematográfico da Marvel (UCM) arrecadou US$ 2,797 bilhões em todo o mundo, de acordo com o Box Office Mojo, tornando-se o filme mais lucrativo da História, desbancando “Avatar” (Idem – 2009), de James Cameron, que ocupou a primeira posição do ranking por 10 anos com US$ 2,790 bilhões. Contudo, logo em suas primeiras semanas, notícias sobre um vírus altamente contagioso e agressivo, originário da China, começaram a desenhar um cenário de medo, insegurança e incerteza. Pouco tempo depois, o novo coronavírus já havia se espalhado pelo planeta, levando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar pandemia em março. A Covid-19 parou o mundo e deixou de ser uma crise apenas sanitária para se tornar, também, econômica e humanitária.
A pandemia atingiu em cheio o cinema, interrompendo todas as suas atividades por longo período, tanto nos centros de produção quanto nas salas de exibição, necessárias para a obtenção do lucro responsável por manter as engrenagens da indústria funcionando. Nem mesmo durante a Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), quando os mercados europeus e asiáticos foram diretamente impactados pelo conflito, obrigando Hollywood a olhar para a América Latina, no movimento conhecido como “política da boa vizinhança”, as salas haviam sido fechadas em larga escala – muitas delas ainda seguem fechadas, inclusive em Los Angeles e Nova York, os principais mercados dos Estados Unidos. E, ao invés da corrida por filmes aguardados, adiamentos constantes e demissões em massa nos estúdios – dentre os filmes adiados, títulos de grande apelo popular, como “Um Lugar Silencioso – Parte II” (A Quiet Place 2 – 2021), “Velozes & Furiosos 9” (F9 – 2021), “007 – Sem Tempo Para Morrer” (No Time to Die – 2021), “Viúva Negra” (Black Widow – 2021) e “Top Gun: Maverick” (Idem – 2021). Com a estrutura abalada, Hollywood tem de lidar com as consequências da pandemia num processo gradativo, baseado no “um problema por vez”, enquanto assiste ao fortalecimento das plataformas de streaming.
Neste contexto de salas fechadas, a Universal Studios causou um terremoto na capital do cinema ao anunciar o lançamento simultâneo de “Trolls 2” (Trolls World Tour – 2020) no circuito comercial e em PVOD, nos Estados Unidos, quebrando a janela de exibição tradicional, que estabelece o intervalo de 70 a 90 dias entre a estreia no circuito e a disponibilização em plataformas digitais e VOD. A decisão do estúdio despertou a ira de exibidores, que ameaçaram boicotar suas produções, inclusive a Regal e a AMC Theatres, duas das maiores redes de cinema do mundo. Mas, como o dinheiro fala mais alto, a AMC, sob a ameaça da falência, selou um acordo polêmico com a outrora criticada Universal que prevê a diminuição da janela de exibição para 17 dias e garante à AMC 10% do lucro do aluguel de cada filme em PVOD, segundo o The Hollywood Reporter – estúdios, distribuidores e exibidores consideram os três primeiros finais de semana o período mais rentável e, por esta razão, a Universal e a AMC decidiram encurtar a janela de maneira a preservá-lo.
De acordo com a Variety à época, a AMC intencionava contratos semelhantes ao da Universal, mas por valores superiores, recebendo 20% da renda dos aluguéis dos filmes dos outros estúdios e anuidade de cerca de US$ 2 milhões referentes à publicidade, além de pagar a eles menos 2% da receita dos títulos exibidos em suas salas. Ou seja, para lançarem em PVOD longas-metragens poucos dias após suas respectivas estreias no circuito, os estúdios terão de disponibilizar 52% da arrecadação de cada um deles para a AMC. No entanto, a rede de cinema não obteve o êxito desejado, principalmente com a Disney, estúdio mais lucrativo da atualidade, que lançou parte do catálogo deste ano em sua plataforma digital, a Disney+, que chegou à América Latina em 17 de novembro.
A situação que já estava conturbada ficou caótica no início deste mês, quando a Warner Bros. quebrou de vez a janela de exibição tradicional sob o pretexto da pandemia, afirmando, segundo o The Hollywood Reporter, que os 17 títulos agendados para este ano e o próximo serão lançados no mesmo “dia e data” no circuito comercial e no streaming, onde serão disponibilizados na HBO Max, ativa somente nos Estados Unidos, mas com previsão de chegada na Europa e América Latina até o final de 2021. Entre eles, “Mulher-Maravilha 1984” (Wonder Woman 1984 – 2020), “Duna” (Dune – 2021), “Matrix 4” (The Matrix 4- 2021), “Space Jam: A New Legacy” (Idem – 2021) e “Esquadrão Suicida” (The Suicide Squad – 2021).
“Ninguém deseja que os filmes voltem às telas mais do que nós. Sabemos que o novo conteúdo é a força vital da exibição teatral, mas temos que equilibrar isso com a realidade de que a maioria dos cinemas nos Estados Unidos provavelmente operará com capacidade reduzida ao longo de 2021. Com este plano único de um ano, podemos apoiar nossos parceiros na exibição com um fluxo constante de filmes de classe mundial, ao mesmo tempo dando aos cinéfilos que podem não ter acesso aos cinemas, ou não estão prontos para voltar, a chance de ver nossos incríveis filmes de 2021. Vemos isso como uma vitória para os amantes do cinema e exibidores, e estamos extremamente gratos aos nossos parceiros de cinema por trabalharem conosco nesta resposta inovadora a essas circunstâncias”, disse Ann Sarnoff, CEO da WarnerMedia Studios and Network Group, em comunicado oficial à imprensa. “Depois de considerar todas as opções disponíveis e o estado projetado da ida ao cinema ao longo de 2021, chegamos à conclusão de que esta era a melhor maneira para o setor cinematográfico da WarnerMedia navegar nos próximos 12 meses. Mais importante, estamos planejando trazer aos consumidores 17 filmes notáveis ao longo do ano, dando a eles a escolha e o poder de decidir como desejam assistir a esses filmes. Nosso conteúdo é extremamente valioso, a menos que esteja em uma prateleira sem ser visto por ninguém. Acreditamos que essa abordagem atende aos nossos fãs, apoia exibidores e cineastas e aprimora a experiência da HBO Max, criando valor para todos”, complementou Jason Killar, CEO da WarnerMedia, também em comunicado oficial.
Considerada uma jogada para promover a HBO Max dentro e fora dos Estados Unidos, a decisão da Warner foi anunciada poucos dias após a confirmação da estreia simultânea de “Mulher-Maravilha 1984” no mercado americano, algo que não criou tanta turbulência por se tratar de um filme específico no momento no qual o público precisa de entretenimento, ao menos a fatia que segue as orientações de isolamento e distanciamento da OMS, e contou com a anuência da AMC. No entanto, despertou a ira dos exibidores, que enfrentam a forte crise econômica e sentiram o impacto até mesmo na Bolsa de Valores, e de figurões do cinema hollywoodiano, inclusive contratados pelo próprio estúdio, como Denis Villeneuve, de “Duna”, e Christopher Nolan, de “Tenet” (Idem – 2021). E foi “Tenet” a produção que mais contribuiu para esta decisão. Considerado a salvação do circuito antes de sua estreia, precoce em tempos de pandemia por pressão do próprio cineasta, o longa se tornou fracasso de bilheteria no mercado americano, faturando apenas US$ 57,8 milhões – globalmente, a ficção-científica estrelada por Robert Pattinson e John David Washington soma US$ 361,4 milhões até o momento.
Indignado, Nolan disse em recente entrevista a Ari Shapiro que a exibição nas salas é apenas uma parte da indústria cinematográfica, e que é muito importante para “a economia da empresa e para as pessoas que nela trabalham. E eu não estou falando sobre mim. Eu não estou falando sobre Ben Affleck”. O cineasta expressou sua preocupação para com profissionais de diversas áreas que compõem a produção cinematográfica que dependem do trabalho para sobreviver e, portanto, estão em perigo devido à decisão, chamada por ele de “alavanca para uma estratégia de negócios diferente, sem primeiro descobrir como essas novas estruturas terão de funcionar”. “Há um perigo nisso que precisa ser tratado por meio de negociações adequadas com os sindicatos, com os profissionais e tudo mais. Há um número enorme de perguntas que surgem disso sobre as estruturas econômicas que permitem aos trabalhadores em Hollywood manterem, você sabe, suas vidas e criarem suas famílias e terem cuidados de saúde e tudo mais. E estou dizendo que essas são coisas que ainda não foram pensadas e precisam ser”, complementou Nolan.
Esta é a mesma preocupação externada por Tom Cruise durante discurso furioso no set de “Missão: Impossível 7” (Mission: Impossible 7 – 2021), cujo áudio foi divulgado na última semana pelo The Sun. Um dos poucos filmes a seguir com o cronograma de filmagens após interrupções impostas pelo lockdown na Europa e por membros infectados na equipe, o longa tem seguido à risca o protocolo de segurança exigido pela Covid-19 e é considerado modelo para a Paramount Pictures e outros estúdios. No áudio, Cruise, que é um dos produtores do filme e, portanto, responsável pela segurança de todos no set, ameaça dois de seus funcionários de demissão por, supostamente, estarem posicionados a menos dos dois metros de distância recomendados pela OMS, deixando nítida toda a pressão causada pelo novo coronavírus ao indivíduo.
“Nós somos de alto padrão! Eles voltaram a filmar em Hollywood por nossa causa! Eles acreditam em nós e no que fazemos! Eu fico ao telefone a noite toda com estúdios, companhias de seguros, produtores, e eles olham para o que nós estamos fazendo, estamos criando milhares de empregos! Não quero mais ver isso (desrespeito ao protocolo de segurança) de novo nunca mais!”, esbravejou Cruise, lembrando a todos, por vezes usando palavrões, que existe a possibilidade de novos adiamentos e/ou cancelamentos caso a pandemia não seja controlada, complementando: “E se não fizerem, vocês estão demitidos! Sem desculpas. Vocês podem pedir desculpas para as pessoas que estão perdendo suas casas porque a indústria está fechada. Não estão colocando comida na mesa, não estão pagando pela educação dos seus filhos. E é com isso que eu durmo toda noite, o futuro desta indústria!”.
Não há como negar que o desabafo do maior astro do cinema contemporâneo é o mesmo entalado na garganta de muitas outras pessoas mundo afora, emocionalmente desgastadas. Apesar disso, a postura de Tom Cruise dividiu opiniões, sobretudo pelos gritos e uso de palavrões. “Algumas pessoas não entendem por que ele ficou tão bravo. Eu entendi. Você sabe, esse é o filme dele. E se ele adoecer com COVID, o filme está encerrado. Já se passaram cinco, seis semanas. Você pode continuar, você pode conseguir um novo operador de câmera – sem desrespeito aos operadores de câmera – você pode conseguir um novo operador de som, mas você não pode conseguir outro Tom Cruise. E se ele está olhando e pode ver que você não está fazendo o que deveria estar fazendo, é como se fosse um dedo do meio, na minha opinião”, defendeu Whoopi Goldberg em seu programa, “The View” (Idem – desde 1997).
“Ele não reagiu exageradamente porque isso é mesmo um problema. Eu tenho um amigo que é assistente de direção em outro programa de TV que teve quase exatamente a mesma situação acontecendo sem uma resposta tão ampla… Você está em uma posição de poder e é complicado. Você tem responsabilidade por todos os outros e ele está absolutamente certo sobre isso. Se a produção cair, muitas pessoas perderão seus empregos. As pessoas precisam entender isso e ser responsáveis. Não é meu estilo, você sabe, falar com todo mundo dessa maneira. Eu acho que não ajuda necessariamente apontar para pessoas específicas dessa forma e fazer isso… mas, você sabe, todo mundo tem seu próprio estilo. As pessoas que participaram da filmagem nos contarão mais sobre isso. Eu entendo o porquê de ele ter feito isso. Ele não está errado sobre isso. Você sabe, eu só, eu não sei se eu teria feito isso pessoalmente, mas não sei todas as circunstâncias, então talvez ele tenha feito isso 10 ou 15 vezes antes”, disse George Clooney em entrevista a Howard Stern.
Considerado exemplo de profissional meticuloso, Tom Cruise tem lutado para manter as engrenagens funcionando em meio ao caos da Covid-19, mas com segurança. Sua bronca levou à demissão voluntária de alguns membros da equipe após o vazamento do áudio pelo The Sun, o que fez crescer a tensão no set num momento difícil para todos, sobretudo aqueles afetados diretamente pela pandemia. Porém, os gritos do astro demonstram seu senso de responsabilidade para com a equipe e a própria indústria que vive uma fase de mudança estrutural que impõe transformações no modus operandi dos estúdios tradicionais que precisam brigar por sua permanência na capital do cinema enquanto assistem a ascensão de produções originais da Netflix, Amazon Prime Video, Apple TV, entre outras.
Esta mudança de hábitos de consumo se acelerou durante a pandemia, mas isto será o suficiente para enterrar o modelo tradicional de cinema, calcado na experiência proporcionada pelas salas de exibição, locais historicamente de socialização? Num cenário pandêmico sem vacinação em massa, ou seja, temporariamente, até pode. Mas, e quando a vida voltar ao normal e as pessoas se sentirem seguras para retomarem suas atividades cotidianas? Provavelmente, não. Isto se deve ao fato de parte do público estar exausta do confinamento necessário para a contenção do novo coronavírus – exceto aqueles que agem como se a Covid-19 não existisse e continuam ignorando a crise sanitária, impedindo a recuperação econômica e agravando a humanitária.
Neste ponto, contudo, é importante ressaltar que a diminuição ou a quebra total da janela tradicional de exibição poderá ser maléfica a longo prazo, pois a pandemia de Covid-19, felizmente, não durará para sempre. Com isso, o impacto financeiro tanto do acordo histórico entre a Universal Pictures e a AMC Theatres quanto da polêmica decisão Warner Bros. será sentido pela indústria, que precisa do lucro proveniente das bilheterias para manter suas engrenagens funcionando, inclusive para posterior investimento em novos projetos, muitos deles dependentes de avanços tecnológicos que necessitam de orçamentos consideráveis. Há muito a ser ponderado por ambos os lados, pois se a indústria, e até mesmo algumas redes, sentir em cifras, muitos empregos serão afetados, entre eles, os que têm sido poupados em meio à atual crise.
O cinema sobreviveu à televisão, à pirataria e, também, sobreviverá ao streaming, pois são muitos os filmes que necessitam da tela grande para impactar o espectador e conquistar seu espaço na História da sétima-arte. Apesar da ameaça constante, este meio de comunicação de massa tem condições suficientes para se reinventar e reerguer, atraindo o público ávido pela liberdade e segurança existentes na Era pré-Covid. No entanto, o caminho até lá será árduo, principalmente no próximo ano, pois a reabertura total das salas depende do controle da pandemia e sua recuperação financeira depende dos espectadores, boa parte deles ainda com medo, pois as salas são locais fechados e propícios à disseminação do novo coronavírus. Além disso, Hollywood começará 2021 ainda sob o baque da baixa arrecadação de 2020, cerca de 80% menor que a de 2019, segundo projeções do Comscore, a pior das últimas quatro décadas e que não se agravou ainda mais graças ao mercado asiático, que conseguiu se manter em meio ao caos.
Fatigado, 2020 chega ao fim como um dos difíceis da História, deixando o gosto amargo dos horrores causados pela Covid-19, sobretudo para as famílias afetadas, muitas delas, infelizmente, lidando com o luto de perdas irreparáveis. No entanto, o medo e a insegurança deste cenário incerto começam a conceder espaço para a esperança em forma de vacina. E será a tão sonhada e desejada vacina, já aplicada em alguns países, a responsável por colocar a vida e a economia nos eixos, possibilitando, nos próximos meses, o retorno gradual e seguro às atividades cotidianas, inclusive nos centros de produção e salas de exibição, que precisaram adotar protocolos de segurança, alguns dispendiosos, para continuarem funcionando nas cidades nas quais estão autorizados, dentro e fora dos Estados Unidos.