Bastidores. Quando 2022 chegou ao fim, com números que demonstravam o processo de recuperação do cinema após a fase mais crítica da pandemia de Covid-19, muitos sentiram alívio e esperança em Hollywood, pois tal processo significava a sobrevivência do modelo tradicional, ou seja, das salas de exibição, em meio à ameaça constante do streaming, que perdeu um pouco da força à medida que as restrições impostas pela crise sanitária eram abolidas graças à vacinação, imprescindível para frear o vírus.
Naquele cenário, 2023 despontava como um ano de esperança, calmaria e estabilização para a indústria que buscava meios de coexistir pacificamente com as plataformas de streaming, utilizando a experiência prévia com a televisão e o videocassete, outrora vistos como vilões em potencial. Mesmo sem perder a esperança, a indústria teve poucos momentos de calmaria. O ano foi tenso na capital mundial do cinema, que precisou lidar com diversas questões, tentando assimilar cada uma delas da maneira que lhe foi mais conveniente.
Logo nos primeiros dias do ano, a comunidade hollywoodiana foi surpreendida com o anúncio da venda dos direitos do Globo de Ouro pela Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood (Hollywood Foreign Press Association – HFPA) à Dick Clark Productions (DCP), empresa responsável pela produção da cerimônia que durante muitos anos foi a segunda mais disputada de Hollywood, e à Eldridge, proprietária do The Hollywood Reporter – a DCP pertence à Penske Media Eldridge, fruto da fusão entre a Penske Media Corporation e a Eldridge. A decisão, tomada após imensa polêmica na mídia acerca da falta de representatividade, diversidade e inclusão, se deu pela necessidade de manutenção do prêmio que durante mais de 70 anos ocupou a posição de segunda premiação mais importante de Hollywood, considerada prévia do Oscar apesar de ser concedido por jornalistas, não profissionais da indústria, como é o caso do prêmio organizado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (Academy of Motion Picture Arts and Sciences – AMPAS).
No olho do furacão, a HFPA foi duramente criticada, o que afetou o Globo de Ouro, boicotado por nomes agraciados no passado, bem como reconhecidos na atualidade, como por exemplo, Brendan Fraser, que recebeu uma indicação na categoria de melhor ator em filme de drama por “A Baleia” (The Whale – 2022, EUA) esse ano e, mesmo assim, se recusou a participar da cerimônia – a estatueta foi entregue a Austin Butler por “Elvis” (Elvis – 2022, EUA / Austrália). Com a venda dos direitos, o Globo de Ouro não tem mais nenhuma relação com a HFPA, mesmo contando com alguns dos integrantes da Associação entre seus membros votantes.
No que tange às premiações, muitas instituições revogaram o afrouxamento das regras de elegibilidade das disputas de seus respectivos prêmios, retomando processo anterior à pandemia, ou bastante próximo a ele. A AMPAS, por exemplo, continua aceitando títulos produzidos por e para plataformas de streaming, mas para concorrerem ao Oscar, todos têm de ser exibidos previamente nos cinemas com ingressos comercializados. É uma maneira de manter o mercado exibidor ativo e o modelo tradicional, que escapou da extinção em 2020.
Ainda surpresa pela venda dos direitos do Globo de Ouro, a indústria cinematográfica foi sacudida por grande polêmica que colocou as normas da AMPAS em xeque, pois duas indicadas à categoria de melhor atriz foram acusadas de descumprimento das regras de elegibilidade, Andrea Riseborough e Michelle Yeoh, que concorriam por “To Leslie” (To Leslie – 2022, EUA) e “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (Everything Everywhere All at Once – 2022, EUA), respectivamente – Yeoh venceu a estatueta e se tornou a primeira atriz de origem asiática a conquistar o prêmio.
À época da cerimônia do Oscar, contudo, a indústria do entretenimento apresentava ruídos nos bastidores, pois o Sindicato dos Roteiristas dos Estados Unidos (Writers Guild of America – WGA) e a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP) haviam iniciado conversas acerca dos direitos dos roteiristas face à recusa dos estúdios e emissoras em aumentar a remuneração do grupo, que manifestava grande preocupação com o uso de Inteligência Artificial nas produções. Em maio, o WGA anunciou que seus membros estavam em greve, impactando diretamente um cronograma, inclusive de estreias, que ainda não tinha voltado aos eixos por causa dos efeitos colaterais da crise sanitária que impôs adiamentos e cancelamentos em série desde 2020. Pouco mais de dois meses depois, o Sindicato dos Atores dos Estados Unidos (Screen Actors Guild – SAG) também anunciou sua paralisação. E, pela primeira vez desde a década de 1960, WGA e SAG interromperam suas atividades conjuntamente, deixando Hollywood e seus executivos de joelhos, obrigando os estúdios a postergarem, novamente, parte dos títulos agendados para 2023 e 2024.
O impasse entre WGA, SAG e AMPTP durou meses e colocou grevistas, famosos ou não, em rota de colisão com executivos como Bob Iger, que havia retornado à liderança da The Walt Disney Company após a queda de Bob Chapek, no final de 2022 – Chapek foi escolhido pelo próprio Iger para sucedê-lo no início de 2020, mas enfrentou dificuldades de se desvencilhar da sombra de seu antecessor, além de ter tomado decisões que causaram reações negativas por parte não apenas dos funcionários da Casa do Mickey, como também da opinião pública. E quando Iger manifestou sua preocupação para com os efeitos da greve conjunta no momento em que a indústria tentava se recuperar completamente dos danos causados pela Covid-19, foi transportado para o olho do furacão, recebendo duras críticas de diversos grevistas, dentre eles, a presidente do SAG, Fran Drescher.
As negociações duraram até 27 de setembro, quando o WGA anunciou que seus membros retornariam ao trabalho, mas com os atores a situação foi mais tensa, com as partes chegando a um consenso somente em 08 de novembro, quando diversos nomes de peso cobravam de Drescher boa vontade para negociar com Iger e outros executivos. A greve chegou ao fim, mas seu impacto financeiro será sentido a curto e médio prazos, sendo impossível dimensioná-lo em cifras neste momento. Assim como também não dá para dimensionar se o acordo será, de fato, benéfico para atores e roteiristas a longo prazo.
Paralelamente à greve, Bob Iger tinha de tomar medidas drásticas para reerguer a Casa do Mickey, bastante vulnerável no ano em que deveria se preocupar somente com as celebrações de seu centenário – a The Walt Disney Company completou 100 anos em 15 de outubro. E isso não se restringiu ao cinema e à televisão, pois a Walt Disney World, um dos principais destinos turísticos do mundo, estava no centro de uma polêmica com o governador da Flórida, Ron DeSantis, que se posicionou contra a Casa do Mickey após protestos de funcionários contra o projeto de lei popularmente conhecido como “Don’t say gay”. Os protestos exigiram manifestação pública de Chapek, irritando DeSantis, que levou à votação a revogação do status de distrito especial da Walt Disney World por meio do Reedy Creek Improvement District (RCID), criado em 1967, quando Roy Disney o pleiteou para concretizar um dos últimos sonhos de seu irmão, Walt, falecido em 1966. O imbróglio ainda não foi solucionado pela justiça americana.
Enquanto a Disney se preocupava com questões sérias, a Warner Bros. e a Universal Pictures comemoravam o sucesso da campanha “Barbenheimer”, que tinha como objetivo principal convencer o público a assistir “Barbie” (Barbie – 2023, EUA) e “Openheimer” (Openheimer – 2023, EUA / Reino Unido), algo que teve, de certa maneira, empurrão de Tom Cruise, produtor e protagonista de “Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte Um” (Mission: Impossible – Dead Reckoning Part One – 2023, EUA), “engolido” pela combinação dos dois concorrentes.
Também completando 100 anos, a Warner se manteve numa situação confortável a despeito de crises de bastidores, como por exemplo, a de “Aquaman 2” (Aquaman 2 – 2023, EUA). Uma das estreias dessa quinta-feira (21), o longa foi inevitavelmente afetado pela batalha midiática e judicial envolvendo Johnny Depp e Amber Heard, que interpreta Mera, interesse amoroso do protagonista, vivido por Jason Momoa.
No último trimestre, os ânimos acalmaram na capital do cinema, que se prepara para a temporada de premiações objetivando o palco do Dolby Theatre em março. Ou seja, a estatueta do Oscar.
No cenário brasileiro, as comédias arrastaram os espectadores às salas de exibição, mas perderam sua força, demonstrando leve mudança comportamental do público, que apreciou títulos como “Pedágio” (Pedágio – 2023, Brasil) e “Retratos Fantasmas” (Retratos Fantasmas – 2023, Brasil), escolhido para representar o país na corrida pelo Oscar.
No atual contexto, 2024 se aproxima como o ano em que a indústria cinematográfica se recuperará, de fato, dos efeitos da fase mais dura da pandemia, observados no cronograma de 2023. Mesmo assim, o valor dos ingressos das salas de exibição ainda é um fator de impedimento para parte do público, que precisa elencar suas prioridades numa época de alta de preços em absolutamente todos os estabelecimentos, dos mercados às farmácias e lojas de material escolar, por exemplo.