Coringa, delírio a dois

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Por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama, colaborador do SRzd Cinco anos após o megassucesso do primeiro filme dedicado ao arqui-inimigo de Batman, o Coringa de Joaquin Phoenix retorna às telas na continuação “Delírio a Dois”. Dessa vez, dividindo os holofotes com a Arlequina, interpretada pela cantora Lady Gaga. Na continuação da saga do Coringa, […]

POR Carlos Frederico Pereira da Silva Gama24/10/2024|5 min de leitura

Coringa, delírio a dois

‘Coringa: Delírio a Dois’. Foto: Divulgação/WB

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Por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama, colaborador do SRzd

Cinco anos após o megassucesso do primeiro filme dedicado ao arqui-inimigo de Batman, o Coringa de Joaquin Phoenix retorna às telas na continuação “Delírio a Dois”. Dessa vez, dividindo os holofotes com a Arlequina, interpretada pela cantora Lady Gaga.

Na continuação da saga do Coringa, o ponto de vista muda, com efeitos decisivos sobre a narrativa. Arthur Fleck deixou de ser o foco para uma revolta coletiva fragmentária. A câmera dá um zoom e o vemos confinado na prisão e em tribunais. As danças do Coringa acontecem na mente do personagem, ao invés de ocupar os horizontes de Gotham City. Fronteiras entre a sanidade e a loucura deixam de ser perguntas em aberto e passam em branco, entre sketches musicais e cenas de violência (lembranças de Laranja Mecânica).

Essas decisões estéticas limitaram o apelo da continuação para os fãs do filme anterior. O Coringa deixou de ser a figura vingativa antissistema, se vê envolvido em contradições. A Arlequina, por seu turno, mantém viva a mitologia do Coringa como mártir e anti-herói. Harleen Quinzel se apaixona pelo personagem e refuga o relutante Arthur Fleck, à medida que este retira a máscara e mergulha nas fragilidades de sua condição ambígua.

A música contraditória dessas faces do Coringa caracteriza “Delírio a Dois”. Ora épica, em cenas da Broadway percorrendo os corredores da mente de Phoenix e Gaga, ora trágica, no cortejo de violências encenadas e sofridas pelos protagonistas, as ações de Coringa e Arlequina são entrecortadas por som e fúria, sem jamais encontrar equilíbrio. Nessa tensão musical reside a força estética do segundo (e último) capítulo dessa saga.

No primeiro filme do Batman – lançado há 35 anos, ainda na época da Guerra Fria – Bruce Wayne (Michael Keaton) é rejeitado pela repórter investigativa Vicky Vale (Kim Basinger), apaixonada pelo Batman, então considerado fora-da-lei em Gotham. As contradições de Wayne – em busca de vingar a morte dos pais – ficam em segundo plano, diante do mistério catártico trazido por cada aparição do Homem-Morcego. Por alguns instantes, a plateia pode ver a justiça ser feita pelas mãos e apetrechos tecnológicos do Batman.

O mistério que reside sob a capa do vigilante noturno permanece o elo central da narrativa no século 21, agora encarnado no sorriso doentio do Coringa. Aparentemente, “Delírio a Dois” completa o ciclo das histórias de Batman sem trazer grandes novidades. As plateias não querem Bruce Wayne e nem aceitam Arthur Fleck. As mitologias são mais palpáveis, mais entusiasmantes que fragilidades humanas. O show deve continuar.

Apesar da atuação admirável do início ao fim, Joaquin Phoenix vê Gaga roubar a cena nas vezes que a cantora tem a oportunidade de balançar as contradições do Coringa. A força expressiva da Arlequina vai além das mazelas cotidianas. Ao viver um sonho coletivo que transcende o personagem de Arthur, Quinzel cessa a busca pelo equilíbrio social.

Na medida em que sonhos se tornam a coerência de suas ações, Gaga traz uma nova lógica para “Delírio a Dois”. A postura da Arlequina confere sentido catártico às palavras, anseios e ações do Coringa. Saímos da tela para uma fábula política incômoda, na qual nos vemos como os principais personagens de uma tragédia em curso.

A conjunção da vingança privada com o ressentimento público é um traço definidor da política no século 21, associado com personagens controversos como Donald Trump e Jair Bolsonaro. O populismo se tornou uma força política global, nas mãos de líderes que mobilizam o rancor fragmentado de milhões, ao se promover como vítimas do sistema, outsiders, que prometem vingança contra as elites e “trazer a grandeza de volta”.

A popularidade de figuras como Trump e o Coringa são um sintoma da confusão mental reinante no século 21. A contribuição do filme vai além de ressaltar a relevância da saúde mental no mundo contemporâneo – tarefa que começou no século passado, com a popularização da psicanálise e o movimento antimanicomial. A busca por coerência pessoal se retrai, diante do efeito borboleta das ações e suas consequências em sociedades desequilibradas. Frente a fragilidades pessoais e institucionais, válvulas de escape se tornam mais sedutoras. Arte, cinema, política se confundem nesse momento.

“Delírio a Dois” traz à tona delírios coletivos, vividos intimamente pelos eleitorados.

Em Gotham City, somos todos Gaga.

Sobre Carlos Frederico Pereira da Silva Gama: Escritor, poeta, cronista, doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio, fundador do BRICS Policy Center, professor da Shiv Nadar University (Índia), cinéfilo e leitor voraz, fã da Fórmula 1 e da cultura pop, líder das bandas independentes Oblique, EXXC e Still That.

Escreveu para a Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Correio Braziliense, O Dia, Brasil Econômico, Portal R7, Observatório da Imprensa e publicações acadêmicas como Global Governance e E-International Relations. É colunista de música e cinema do blog de cultura pop Cultecléticos.

Publicou quatro livros – “Surrealogos” (2012), “Modernity at Risk: Complex Emergencies, Humanitarianism, Sovereignty” (2012), “Após a Guerra, Estabilidade? Mudanças Institucionais nas Operações de Paz da ONU (1992-2000)” (2016) e “Ensaios Globais: da Primavera Árabe ao Brexit (2011-2020)” (2022).

Rodapé - entretenimento

Por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama, colaborador do SRzd

Cinco anos após o megassucesso do primeiro filme dedicado ao arqui-inimigo de Batman, o Coringa de Joaquin Phoenix retorna às telas na continuação “Delírio a Dois”. Dessa vez, dividindo os holofotes com a Arlequina, interpretada pela cantora Lady Gaga.

Na continuação da saga do Coringa, o ponto de vista muda, com efeitos decisivos sobre a narrativa. Arthur Fleck deixou de ser o foco para uma revolta coletiva fragmentária. A câmera dá um zoom e o vemos confinado na prisão e em tribunais. As danças do Coringa acontecem na mente do personagem, ao invés de ocupar os horizontes de Gotham City. Fronteiras entre a sanidade e a loucura deixam de ser perguntas em aberto e passam em branco, entre sketches musicais e cenas de violência (lembranças de Laranja Mecânica).

Essas decisões estéticas limitaram o apelo da continuação para os fãs do filme anterior. O Coringa deixou de ser a figura vingativa antissistema, se vê envolvido em contradições. A Arlequina, por seu turno, mantém viva a mitologia do Coringa como mártir e anti-herói. Harleen Quinzel se apaixona pelo personagem e refuga o relutante Arthur Fleck, à medida que este retira a máscara e mergulha nas fragilidades de sua condição ambígua.

A música contraditória dessas faces do Coringa caracteriza “Delírio a Dois”. Ora épica, em cenas da Broadway percorrendo os corredores da mente de Phoenix e Gaga, ora trágica, no cortejo de violências encenadas e sofridas pelos protagonistas, as ações de Coringa e Arlequina são entrecortadas por som e fúria, sem jamais encontrar equilíbrio. Nessa tensão musical reside a força estética do segundo (e último) capítulo dessa saga.

No primeiro filme do Batman – lançado há 35 anos, ainda na época da Guerra Fria – Bruce Wayne (Michael Keaton) é rejeitado pela repórter investigativa Vicky Vale (Kim Basinger), apaixonada pelo Batman, então considerado fora-da-lei em Gotham. As contradições de Wayne – em busca de vingar a morte dos pais – ficam em segundo plano, diante do mistério catártico trazido por cada aparição do Homem-Morcego. Por alguns instantes, a plateia pode ver a justiça ser feita pelas mãos e apetrechos tecnológicos do Batman.

O mistério que reside sob a capa do vigilante noturno permanece o elo central da narrativa no século 21, agora encarnado no sorriso doentio do Coringa. Aparentemente, “Delírio a Dois” completa o ciclo das histórias de Batman sem trazer grandes novidades. As plateias não querem Bruce Wayne e nem aceitam Arthur Fleck. As mitologias são mais palpáveis, mais entusiasmantes que fragilidades humanas. O show deve continuar.

Apesar da atuação admirável do início ao fim, Joaquin Phoenix vê Gaga roubar a cena nas vezes que a cantora tem a oportunidade de balançar as contradições do Coringa. A força expressiva da Arlequina vai além das mazelas cotidianas. Ao viver um sonho coletivo que transcende o personagem de Arthur, Quinzel cessa a busca pelo equilíbrio social.

Na medida em que sonhos se tornam a coerência de suas ações, Gaga traz uma nova lógica para “Delírio a Dois”. A postura da Arlequina confere sentido catártico às palavras, anseios e ações do Coringa. Saímos da tela para uma fábula política incômoda, na qual nos vemos como os principais personagens de uma tragédia em curso.

A conjunção da vingança privada com o ressentimento público é um traço definidor da política no século 21, associado com personagens controversos como Donald Trump e Jair Bolsonaro. O populismo se tornou uma força política global, nas mãos de líderes que mobilizam o rancor fragmentado de milhões, ao se promover como vítimas do sistema, outsiders, que prometem vingança contra as elites e “trazer a grandeza de volta”.

A popularidade de figuras como Trump e o Coringa são um sintoma da confusão mental reinante no século 21. A contribuição do filme vai além de ressaltar a relevância da saúde mental no mundo contemporâneo – tarefa que começou no século passado, com a popularização da psicanálise e o movimento antimanicomial. A busca por coerência pessoal se retrai, diante do efeito borboleta das ações e suas consequências em sociedades desequilibradas. Frente a fragilidades pessoais e institucionais, válvulas de escape se tornam mais sedutoras. Arte, cinema, política se confundem nesse momento.

“Delírio a Dois” traz à tona delírios coletivos, vividos intimamente pelos eleitorados.

Em Gotham City, somos todos Gaga.

Sobre Carlos Frederico Pereira da Silva Gama: Escritor, poeta, cronista, doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio, fundador do BRICS Policy Center, professor da Shiv Nadar University (Índia), cinéfilo e leitor voraz, fã da Fórmula 1 e da cultura pop, líder das bandas independentes Oblique, EXXC e Still That.

Escreveu para a Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Correio Braziliense, O Dia, Brasil Econômico, Portal R7, Observatório da Imprensa e publicações acadêmicas como Global Governance e E-International Relations. É colunista de música e cinema do blog de cultura pop Cultecléticos.

Publicou quatro livros – “Surrealogos” (2012), “Modernity at Risk: Complex Emergencies, Humanitarianism, Sovereignty” (2012), “Após a Guerra, Estabilidade? Mudanças Institucionais nas Operações de Paz da ONU (1992-2000)” (2016) e “Ensaios Globais: da Primavera Árabe ao Brexit (2011-2020)” (2022).

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