Análise: A eleição presidencial na Argentina e desafios para o Mercosul

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Em 2023, a Argentina completa 40 anos de sua mais recente redemocratização às vésperas de uma nova eleição presidencial. Nos 40 anos anteriores a 1983, o país viveu quatro golpes de estado, e esteve sob ditaduras militares por 26 anos, incluindo um regime que se notabilizou por seus crimes contra a humanidade, encerrado pela derrota militar nas Ilhas […]

POR Carlos Frederico Pereira da Silva Gama16/10/2023|7 min de leitura

Análise: A eleição presidencial na Argentina e desafios para o Mercosul

Bandeira da Argentina. Foto: Pikist

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Em 2023, a Argentina completa 40 anos de sua mais recente redemocratização às vésperas de uma nova eleição presidencial. Nos 40 anos anteriores a 1983, o país viveu quatro golpes de estado, e esteve sob ditaduras militares por 26 anos, incluindo um regime que se notabilizou por seus crimes contra a humanidade, encerrado pela derrota militar nas Ilhas Falklands/Malvinas diante do Reino Unido.

Os dois grandes partidos da Argentina moderna – a agremiação liberal Unión Cívica Radical (UCR) e o nacionalista Partido Justicialista (PJ, criado por Juan Domingo Perón) – chegam divididos às urnas.

Após a derrota do então presidente Maurício Macri em sua tentativa de reeleição em 2019, os radicais (28% nas eleições primárias – PASO) investiram na candidatura da ex-ministra da economia Patrícia Bullrich. De acordo com pesquisas de opinião, Bullrich segue na terceira posição, disputando intenções de voto com o centrista Sérgio Massa. O atual ministro da economia de Alberto Fernández herdou o apoio do atual governo com reticências. Em 2015, disputou a eleição presidencial contra o justicialista Daniel Scioli. Ao não apoiar Scioli (vencedor do 1º turno por apertada margem) Massa acabaria por favorecer a vitória surpreendente de Macri, a primeira de um liberal em uma geração.

Em mais uma conturbada cisão, o Peronismo chega enfraquecido ao cabo do mandato Fernández. Nem o atual presidente – com baixa popularidade – nem sua vice, a ex-presidenta Cristina Kirchner (enfrentando acusações de corrupção) ofereceram suas candidaturas. Em meio a uma aguda crise, o peronismo viu encolher sua fatia das primárias para 27% (Cristina foi reeleita com mais de 60% dos votos em 2011 – cifras somente superadas pelo próprio general Perón, em 1973). Nomeado ministro para estancar a crise econômica e oriundo de um partido de centro (Frente Renovador), o moderado Massa não apela fortemente nem ao kirchnerismo nem tampouco a
setores tradicionais do Peronismo – tais como os sindicatos, os estudantes e os movimentos sociais. Seu desempenho no PASO é o pior dentre candidaturas afiliadas ao Peronismo nesse século.

O perfil tecnocrático de Bullrich e de Massa relembra candidaturas anteriores de ex-ministros da economia que naufragaram nas urnas: Domingos Cavallo, Ricardo López Murphy e Roberto Lavagna. A composição das candidaturas em 2023 favorece candidaturas antissistema. Os radicais mais conservadores e a banda direita do peronismo se bandearam para a candidatura do franco-atirador Javier Milei, vencedor das eleições primárias (PASO) com 30% dos votos. O excêntrico Milei se promoveu como candidatura antissistema com discurso econômico ultraliberal – duas bandeiras de alta octanagem, num país em que o sistema político e a economia seguem mal. Ironicamente, Milei também fez carreira como economista liberal até obter notoriedade como
populista de ultradireita.

Num país onde a moeda (o Peso) perdeu 70% de seu valor de compra junto ao dólar apenas nos 10 primeiros meses de 2023, o fantasma da inflação volta a pairar, superando a casa de 100% anual. A recuperação da economia pós-pandemia volta a esbarrar no endividamento externo e na espiral creditícia desencadeada pela Covid. Pela quarta vez no século, a Argentina se encontra em apuros.

O enfraquecimento simultâneo de radicais e peronistas joga água na fervura da crise argentina. Além de recuperar uma velha receita (a dolarização da economia), Milei prometeu dar as costas ao MERCOSUL e aos BRICS (a Argentina foi recém-admitida no grupo). A política externa de um eventual governo populista de ultradireita não tem antecedentes no Río de la Plata – embora tenha feito estragos ao norte, durante a administração Jair Bolsonaro no Brasil.

O bloco de integração sul-americano enfrenta dias difíceis. No século 21, apenas em três ocasiões seus integrantes conseguiram aumentar seus Produtos Internos Brutos simultaneamente (dados do Banco Mundial). Entre 2005 e 2008, beneficiários do boom global de commodities. Em 2011, como efeito retardado das políticas anticíclicas adotadas pelos governos da “onda rosa” após a crise global de 2008. Por fim, no biênio 2022/23, os membros do MERCOSUL se recuperaram da depressão trazida pela pandemia da Covid-19. Nos mesmos períodos, houve também aumento do comércio exterior dos países do bloco com o restante do mundo (dados da WITS/OMC) mas o mesmo não se refletiu nas relações comerciais intrabloco. Ao passo que a China substituía os Estados Unidos como principal comprador e investidor nos países sul-americanos, membros do MERCOSUL como o Uruguai de Lacalle Pou buscaram acordos bilaterais de comércio com a potência asiática. Em longo processo de desindustrialização, as economias do MERCOSUL passaram a disputar em segmentos similares do mercado global de commodities. A complementaridade das economias mercosulinas não avançou após o pico da integração no fim do século 20, antes de crises financeiras globais atingirem Argentina e Brasil nos governos de Carlos Menem e de Fernando Henrique Cardoso.

Ironicamente, a simultânea nova dependência dos investimentos e mercados chineses reaproximou os gigantes sul-americanos no século 21, uma dinâmica que supera os limites da integração regional. A reeleição de Lula deu fôlego extra para uma convergência política, culminando no patrocínio brasileiro da entrada argentina nos BRICS e no empréstimo bilionário concedido à Argentina pelo Novo Banco de Desenvolvimento (presidido por Dilma Rousseff) às vésperas da eleição presidencial.

Em termos domésticos, o volátil sistema partidário argentino convive com a possibilidade de um enfraquecimento simultâneo dos principais partidos e a ascensão de uma nova persona carismática. No rastro do novo Coronavírus, a esquerda colheu vitórias eleitorais consistentes na América do Sul (como parte da tendência global do enfraquecimento de governos associados com a pandemia). No caso argentino, o retorno peronista do kirchnerismo com Cristina e Fernández coincidiu com o auge da crise de saúde, no qual a Argentina chegou a figurar como um dos principais hotspots globais.

A candidatura Milei acena com a possibilidade de um triunfo tardio do populismo de direita na Argentina, após seus maiores expoentes globais terem sido derrotados por variantes da Covid-19.

As pesquisas indicam um provável segundo turno (balotaje), ao passo que as principais candidaturas oscilam dentro das margens de erro.

Não obstante profundos e persistentes revezes sociais, crônicas deficiências políticas e econômicas e um aumento dos níveis de violência social no século 21, os integrantes do MERCOSUL foram poupados dos conflitos que ocorrem simultaneamente no leste da Europa e no Oriente Médio. As jovens democracias do Cone Sul comemoram, conjuntamente, a derrubada dos últimos ditadores, ocorrida há quase 4 décadas. Num século de crises sobrepostas, as sociedades integrantes do MERCOSUL conseguiram consolidar suas democracias a duras penas e também conseguiram promover, ainda que esparsamente e de forma não-sistemática, participação política e justiça social.

Ainda não aprendemos a conviver como hermanos – estamos distantes da integração de outras regiões do planeta. As sociedades sul-americanas enfrentam desafios similares, mas atuando em paralelo – uma situação com poucos paralelos no âmbito global. Os dilemas argentinos se espelham nas sociedades vizinhas – mesmo que nos acostumemos a enxergar apenas entre muros soberanos.

A eleição presidencial na Argentina não interessa apenas a 35 milhões de eleitores em 22 de Outubro. Além de passo fundamental num legado democrático em consolidação, a vontade das urnas argentinas impacta significativamente relações sociais no continente, com efeitos visíveis nos quatro cantos do Cone Sul. As coordenadas da integração regional num mundo em turbulência dependem das decisões que emanarão de Buenos Aires. Decisões democraticamente tomadas facilitam a comunicação com vizinhos e parceiros e reforçam a confiança, em meio a dias difíceis.

* Artigo de autoria de Carlos Frederico Pereira da Silva Gama (professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins)

Em 2023, a Argentina completa 40 anos de sua mais recente redemocratização às vésperas de uma nova eleição presidencial. Nos 40 anos anteriores a 1983, o país viveu quatro golpes de estado, e esteve sob ditaduras militares por 26 anos, incluindo um regime que se notabilizou por seus crimes contra a humanidade, encerrado pela derrota militar nas Ilhas Falklands/Malvinas diante do Reino Unido.

Os dois grandes partidos da Argentina moderna – a agremiação liberal Unión Cívica Radical (UCR) e o nacionalista Partido Justicialista (PJ, criado por Juan Domingo Perón) – chegam divididos às urnas.

Após a derrota do então presidente Maurício Macri em sua tentativa de reeleição em 2019, os radicais (28% nas eleições primárias – PASO) investiram na candidatura da ex-ministra da economia Patrícia Bullrich. De acordo com pesquisas de opinião, Bullrich segue na terceira posição, disputando intenções de voto com o centrista Sérgio Massa. O atual ministro da economia de Alberto Fernández herdou o apoio do atual governo com reticências. Em 2015, disputou a eleição presidencial contra o justicialista Daniel Scioli. Ao não apoiar Scioli (vencedor do 1º turno por apertada margem) Massa acabaria por favorecer a vitória surpreendente de Macri, a primeira de um liberal em uma geração.

Em mais uma conturbada cisão, o Peronismo chega enfraquecido ao cabo do mandato Fernández. Nem o atual presidente – com baixa popularidade – nem sua vice, a ex-presidenta Cristina Kirchner (enfrentando acusações de corrupção) ofereceram suas candidaturas. Em meio a uma aguda crise, o peronismo viu encolher sua fatia das primárias para 27% (Cristina foi reeleita com mais de 60% dos votos em 2011 – cifras somente superadas pelo próprio general Perón, em 1973). Nomeado ministro para estancar a crise econômica e oriundo de um partido de centro (Frente Renovador), o moderado Massa não apela fortemente nem ao kirchnerismo nem tampouco a
setores tradicionais do Peronismo – tais como os sindicatos, os estudantes e os movimentos sociais. Seu desempenho no PASO é o pior dentre candidaturas afiliadas ao Peronismo nesse século.

O perfil tecnocrático de Bullrich e de Massa relembra candidaturas anteriores de ex-ministros da economia que naufragaram nas urnas: Domingos Cavallo, Ricardo López Murphy e Roberto Lavagna. A composição das candidaturas em 2023 favorece candidaturas antissistema. Os radicais mais conservadores e a banda direita do peronismo se bandearam para a candidatura do franco-atirador Javier Milei, vencedor das eleições primárias (PASO) com 30% dos votos. O excêntrico Milei se promoveu como candidatura antissistema com discurso econômico ultraliberal – duas bandeiras de alta octanagem, num país em que o sistema político e a economia seguem mal. Ironicamente, Milei também fez carreira como economista liberal até obter notoriedade como
populista de ultradireita.

Num país onde a moeda (o Peso) perdeu 70% de seu valor de compra junto ao dólar apenas nos 10 primeiros meses de 2023, o fantasma da inflação volta a pairar, superando a casa de 100% anual. A recuperação da economia pós-pandemia volta a esbarrar no endividamento externo e na espiral creditícia desencadeada pela Covid. Pela quarta vez no século, a Argentina se encontra em apuros.

O enfraquecimento simultâneo de radicais e peronistas joga água na fervura da crise argentina. Além de recuperar uma velha receita (a dolarização da economia), Milei prometeu dar as costas ao MERCOSUL e aos BRICS (a Argentina foi recém-admitida no grupo). A política externa de um eventual governo populista de ultradireita não tem antecedentes no Río de la Plata – embora tenha feito estragos ao norte, durante a administração Jair Bolsonaro no Brasil.

O bloco de integração sul-americano enfrenta dias difíceis. No século 21, apenas em três ocasiões seus integrantes conseguiram aumentar seus Produtos Internos Brutos simultaneamente (dados do Banco Mundial). Entre 2005 e 2008, beneficiários do boom global de commodities. Em 2011, como efeito retardado das políticas anticíclicas adotadas pelos governos da “onda rosa” após a crise global de 2008. Por fim, no biênio 2022/23, os membros do MERCOSUL se recuperaram da depressão trazida pela pandemia da Covid-19. Nos mesmos períodos, houve também aumento do comércio exterior dos países do bloco com o restante do mundo (dados da WITS/OMC) mas o mesmo não se refletiu nas relações comerciais intrabloco. Ao passo que a China substituía os Estados Unidos como principal comprador e investidor nos países sul-americanos, membros do MERCOSUL como o Uruguai de Lacalle Pou buscaram acordos bilaterais de comércio com a potência asiática. Em longo processo de desindustrialização, as economias do MERCOSUL passaram a disputar em segmentos similares do mercado global de commodities. A complementaridade das economias mercosulinas não avançou após o pico da integração no fim do século 20, antes de crises financeiras globais atingirem Argentina e Brasil nos governos de Carlos Menem e de Fernando Henrique Cardoso.

Ironicamente, a simultânea nova dependência dos investimentos e mercados chineses reaproximou os gigantes sul-americanos no século 21, uma dinâmica que supera os limites da integração regional. A reeleição de Lula deu fôlego extra para uma convergência política, culminando no patrocínio brasileiro da entrada argentina nos BRICS e no empréstimo bilionário concedido à Argentina pelo Novo Banco de Desenvolvimento (presidido por Dilma Rousseff) às vésperas da eleição presidencial.

Em termos domésticos, o volátil sistema partidário argentino convive com a possibilidade de um enfraquecimento simultâneo dos principais partidos e a ascensão de uma nova persona carismática. No rastro do novo Coronavírus, a esquerda colheu vitórias eleitorais consistentes na América do Sul (como parte da tendência global do enfraquecimento de governos associados com a pandemia). No caso argentino, o retorno peronista do kirchnerismo com Cristina e Fernández coincidiu com o auge da crise de saúde, no qual a Argentina chegou a figurar como um dos principais hotspots globais.

A candidatura Milei acena com a possibilidade de um triunfo tardio do populismo de direita na Argentina, após seus maiores expoentes globais terem sido derrotados por variantes da Covid-19.

As pesquisas indicam um provável segundo turno (balotaje), ao passo que as principais candidaturas oscilam dentro das margens de erro.

Não obstante profundos e persistentes revezes sociais, crônicas deficiências políticas e econômicas e um aumento dos níveis de violência social no século 21, os integrantes do MERCOSUL foram poupados dos conflitos que ocorrem simultaneamente no leste da Europa e no Oriente Médio. As jovens democracias do Cone Sul comemoram, conjuntamente, a derrubada dos últimos ditadores, ocorrida há quase 4 décadas. Num século de crises sobrepostas, as sociedades integrantes do MERCOSUL conseguiram consolidar suas democracias a duras penas e também conseguiram promover, ainda que esparsamente e de forma não-sistemática, participação política e justiça social.

Ainda não aprendemos a conviver como hermanos – estamos distantes da integração de outras regiões do planeta. As sociedades sul-americanas enfrentam desafios similares, mas atuando em paralelo – uma situação com poucos paralelos no âmbito global. Os dilemas argentinos se espelham nas sociedades vizinhas – mesmo que nos acostumemos a enxergar apenas entre muros soberanos.

A eleição presidencial na Argentina não interessa apenas a 35 milhões de eleitores em 22 de Outubro. Além de passo fundamental num legado democrático em consolidação, a vontade das urnas argentinas impacta significativamente relações sociais no continente, com efeitos visíveis nos quatro cantos do Cone Sul. As coordenadas da integração regional num mundo em turbulência dependem das decisões que emanarão de Buenos Aires. Decisões democraticamente tomadas facilitam a comunicação com vizinhos e parceiros e reforçam a confiança, em meio a dias difíceis.

* Artigo de autoria de Carlos Frederico Pereira da Silva Gama (professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins)

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