Democracia sob impasse: A Espanha que sai das urnas pós-pandemia

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A pandemia do novo Coronavírus ocupou o planeta Terra entre 2019 e 2022. Após 700 milhões de infecções e 7 milhões de mortos, o arrefecimento da doença deixou um rastro de incertezas globais. Nesse período, a Covid-19 trouxe impactos políticos significativos. Fronteiras se fecharam, o turismo e o comércio internacional sofreram quedas abruptas, na maior recessão do século. Nos […]

POR Carlos Frederico Pereira da Silva Gama25/07/2023|7 min de leitura

Democracia sob impasse: A Espanha que sai das urnas pós-pandemia

Bandeira da Espanha. Foto: Pikist

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A pandemia do novo Coronavírus ocupou o planeta Terra entre 2019 e 2022. Após 700 milhões de infecções e 7 milhões de mortos, o arrefecimento da doença deixou um rastro de incertezas globais. Nesse período, a Covid-19 trouxe impactos políticos significativos. Fronteiras se fecharam, o turismo e o comércio internacional sofreram quedas abruptas, na maior recessão do século. Nos regimes democráticos que foram epicentros da pandemia, as eleições catalisaram mudanças profundas – vitimando governos associados com a Covid.

Símbolo da onda populista que varreu o globo na década passada, o republicano Donald Trump foi derrotado pelo democrata Joe Biden nas eleições presidenciais nos Estados Unidos em 2020. Na Alemanha, um longo período de hegemonia da Democracia Cristã sob a liderança de Angela Merkel foi encerrado em 2021. Em 2022, no Brasil, outro populista de direita – Jair Bolsonaro – seria derrotado pelo ex-presidente Lula, reforçando a onda de vitórias eleitorais da esquerda na América Latina. Em contraste com as Américas, na Europa a extrema-direita chegou ao poder na Itália pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, com os Fratelli d’Itália de Giorgia Meloni. Na França, a reeleição presidencial do liberal Emmanuel Macron foi obtida por pequena margem frente à ultradireitista Marine Le Pen (grande vencedora das eleições regionais e comunitárias realizadas na pandemia).

Na Espanha, os impactos políticos da Covid-19 reproduziram esse padrão global. O país registrou 14 milhões de casos da doença (numa população de 47 milhões) desde 2020. Durante a pandemia, o governo espanhol repousou numa coalização formada pelo Partido Socialista Operário (PSOE), uma constelação de partidos de esquerda (Unidas Podemos) e independentistas catalães. Esse agregado acaba de colher os resultados das eleições gerais de 23 de Julho de 2023.

As urnas deram a vitória ao Partido Popular (PP) de Alberto Núñez Feijóo. O partido obteve mais de 8 milhões de votos e 47 cadeiras a mais que em 2019, se recuperando da crise de legitimidade trazida pela renúncia de Mariano Rajoy (2018), acusado de corrupção. Não obstante, o PSOE do primeiro-ministro Pedro Sánchez obteve 1 milhão de votos a mais que em 2019 e saiu das urnas com 2 representantes a mais, mesmo na segunda colocação. O conglomerado de esquerda SUMAR (que incorporou Unidas Podemos) e a agremiação neofranquista Vox ficaram para trás, porém mantiveram conjuntamente 1/4 do eleitorado.

O enfraquecimento dos extremos do espectro político conduziu a Espanha ao centro de um impasse. Os grandes partidos da redemocratização (PP e PSOE) não obtiveram maioria de cadeiras nas Cortes. As chances de Feijóo formar governo e a sobrevivência política de Sánchez serão medidas nas próximas semanas, em negociações com partidos minoritários.

O desempenho da economia espanhola no governo Sánchez representou, em linhas gerais, as tendências da economia global durante a era da Covid-19 (de acordo com dados do Banco Mundial, da OCDE e da Organização Mundial do Comércio).

Anteriormente à pandemia, as relações internacionais se encontravam esgarçadas pela competição global, inflamada pelo nacionalismo econômico dos anos de populismo. Taxas de crescimento do Produto Interno Bruto e cifras de Investimento Externo Direto não eram notáveis em 2019 (ainda que fossem acima da média das economias da Zona do Euro).

A vinda do novo Coronavírus desencadeou um fechamento das sociedades nacionais até mesmo na Zona de Schengen. A Espanha experimentou a maior queda do PIB desde 1929 e desinflação em 2020, além de contrações significativas na balança comercial, inclusive no relacionamento com a União Europeia. Mesmo hermeticamente fechada em lockdown, a Espanha se tornou um dos epicentros da doença. A desaceleração econômica prosseguiu até meados de 2021, quando a vacinação em massa pavimentou um paulatino retorno à “velha normalidade”. Transformações tecnológicas nas cadeias produtivas adotadas na pandemia aos poucos foram revelando seus pontos fortes. A recuperação dos índices macroeconômicos veio acompanhada de escalada inflacionária e crescente endividamento.

Em 2022, a Espanha recuperava a escala produtiva de 2019, com aumento significativo do comércio exterior (impactado pela invasão russa da Ucrânia). Gastos com energia, combustíveis e alimentação se uniram aos efeitos da Covid-19, reduzindo o crescimento da economia a partir da segunda metade de 2022. As previsões de crescimento para 2023 têm índices similares ao período pré-pandêmico (ao redor de 2% do PIB).

No cômputo geral, o governo Sánchez logrou manter estáveis os níveis de renda e bem-estar da população espanhola na era da COVID-19. O combate às desigualdades sociais –antiga bandeira dos socialistas – se traduziu na diminuição do índice de GINI desde 2019 e na geração de empregos formais, reduzindo a taxa de desemprego para patamares próximos de 10% da força de trabalho. O Investimento Externo Direto aumentou quase 50% (mesmo com a queda de 2020), bem como o déficit na balança comercial (que quase dobrou, após o início da guerra). Se a pandemia representou uma dimensão destrutiva da globalização, as sociedade nacionais conseguiram se reintegrar parcialmente ao cabo de quatro anos, reativando elos globais.

Mesmo assim, o desempenho político de Sánchez foi impactado pela sangria da pandemia. As mais de 120 mil vítimas representam o maior contingente de espanhóis mortos desde a Guerra Civil. A saída do vice premier Pablo Iglesias (Unidas Podemos) coincidiu com o auge da mortalidade da Covid-19 na península ibérica em 2021 e abalou a coalizão governante. A adoção de medidas restritivas de direitos entre 2020 e 2021 reduziu a legitimidade política da esquerda perante a população. Rusgas históricas entre radicais de UP e o pragmatismo do PSOE se acentuaram até 2023. A coalizão de esquerda vencedora em 2019 – a primeira desde a década de 1930 – se desagregou ao longo da pandemia, e ambos os processos favoreceram a remontada dos conservadores. A direita espanhola, que obteve conjuntamente 1/3 dos votos em 2019, agora representa quase a metade do eleitorado.

Outra questão que o governo Sánchez deixou em aberto é o status da autonomia catalã, após as tentativas político-jurídicas de secessão da década passada. Após as negociações entre as Cortes e a Generalitat emperrarem durante a pandemia, os resultados eleitorais de 2023 deixaram o PSOE dependente do apoio do partido independentista Junts per Catalunya, do líder exilado Carles Puigdemont – que já anunciou sua intenção de bloquear a formação de um novo governo. Ao passo que a questão catalã segue em aberto, outras ambições autonomistas se apresentam à mesa dos vencedores de 23 de Julho. O Partido Nacionalista Basco (PNV) acaba de recusar convite do PP para formar a maioria das Cortes.

O impasse na política espanhola cresce de vulto, num mundo fraturado pela guerra de Vladimir Putin e pela competição entre blocos econômicos. A configuração do futuro governo da Espanha interfere significativamente no apoio europeu à Ucrânia e nas negociações entre União Europeia e Mercosul, que esbarram em concessões mútuas, adiadas por décadas de cooperação institucionalizada em retração no plano internacional.

As eleições na Espanha revelam a dimensão dos impactos da pandemia nas democracias contemporâneas. A Covid-19 não mudou toda a configuração da esfera política de súbito. O novo Coronavírus se alimentou de antigas fragilidades e persistentes impasses sociais. A doença potencializou lacunas entre as sociedades e no interior dessas, revelando limites da democracia. O populismo naufragou no tsunami da pandemia. E mesmo governos que podem se orgulhar da performance face ao novo Coronavírus não saíram ilesos.

A Covid-19 permanece uma coordenada fundamental do nosso futuro próximo. No “novo normal”, a democracia permanece sob impasse, com desafios e potenciais inconclusos.

A pandemia do novo Coronavírus ocupou o planeta Terra entre 2019 e 2022. Após 700 milhões de infecções e 7 milhões de mortos, o arrefecimento da doença deixou um rastro de incertezas globais. Nesse período, a Covid-19 trouxe impactos políticos significativos. Fronteiras se fecharam, o turismo e o comércio internacional sofreram quedas abruptas, na maior recessão do século. Nos regimes democráticos que foram epicentros da pandemia, as eleições catalisaram mudanças profundas – vitimando governos associados com a Covid.

Símbolo da onda populista que varreu o globo na década passada, o republicano Donald Trump foi derrotado pelo democrata Joe Biden nas eleições presidenciais nos Estados Unidos em 2020. Na Alemanha, um longo período de hegemonia da Democracia Cristã sob a liderança de Angela Merkel foi encerrado em 2021. Em 2022, no Brasil, outro populista de direita – Jair Bolsonaro – seria derrotado pelo ex-presidente Lula, reforçando a onda de vitórias eleitorais da esquerda na América Latina. Em contraste com as Américas, na Europa a extrema-direita chegou ao poder na Itália pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, com os Fratelli d’Itália de Giorgia Meloni. Na França, a reeleição presidencial do liberal Emmanuel Macron foi obtida por pequena margem frente à ultradireitista Marine Le Pen (grande vencedora das eleições regionais e comunitárias realizadas na pandemia).

Na Espanha, os impactos políticos da Covid-19 reproduziram esse padrão global. O país registrou 14 milhões de casos da doença (numa população de 47 milhões) desde 2020. Durante a pandemia, o governo espanhol repousou numa coalização formada pelo Partido Socialista Operário (PSOE), uma constelação de partidos de esquerda (Unidas Podemos) e independentistas catalães. Esse agregado acaba de colher os resultados das eleições gerais de 23 de Julho de 2023.

As urnas deram a vitória ao Partido Popular (PP) de Alberto Núñez Feijóo. O partido obteve mais de 8 milhões de votos e 47 cadeiras a mais que em 2019, se recuperando da crise de legitimidade trazida pela renúncia de Mariano Rajoy (2018), acusado de corrupção. Não obstante, o PSOE do primeiro-ministro Pedro Sánchez obteve 1 milhão de votos a mais que em 2019 e saiu das urnas com 2 representantes a mais, mesmo na segunda colocação. O conglomerado de esquerda SUMAR (que incorporou Unidas Podemos) e a agremiação neofranquista Vox ficaram para trás, porém mantiveram conjuntamente 1/4 do eleitorado.

O enfraquecimento dos extremos do espectro político conduziu a Espanha ao centro de um impasse. Os grandes partidos da redemocratização (PP e PSOE) não obtiveram maioria de cadeiras nas Cortes. As chances de Feijóo formar governo e a sobrevivência política de Sánchez serão medidas nas próximas semanas, em negociações com partidos minoritários.

O desempenho da economia espanhola no governo Sánchez representou, em linhas gerais, as tendências da economia global durante a era da Covid-19 (de acordo com dados do Banco Mundial, da OCDE e da Organização Mundial do Comércio).

Anteriormente à pandemia, as relações internacionais se encontravam esgarçadas pela competição global, inflamada pelo nacionalismo econômico dos anos de populismo. Taxas de crescimento do Produto Interno Bruto e cifras de Investimento Externo Direto não eram notáveis em 2019 (ainda que fossem acima da média das economias da Zona do Euro).

A vinda do novo Coronavírus desencadeou um fechamento das sociedades nacionais até mesmo na Zona de Schengen. A Espanha experimentou a maior queda do PIB desde 1929 e desinflação em 2020, além de contrações significativas na balança comercial, inclusive no relacionamento com a União Europeia. Mesmo hermeticamente fechada em lockdown, a Espanha se tornou um dos epicentros da doença. A desaceleração econômica prosseguiu até meados de 2021, quando a vacinação em massa pavimentou um paulatino retorno à “velha normalidade”. Transformações tecnológicas nas cadeias produtivas adotadas na pandemia aos poucos foram revelando seus pontos fortes. A recuperação dos índices macroeconômicos veio acompanhada de escalada inflacionária e crescente endividamento.

Em 2022, a Espanha recuperava a escala produtiva de 2019, com aumento significativo do comércio exterior (impactado pela invasão russa da Ucrânia). Gastos com energia, combustíveis e alimentação se uniram aos efeitos da Covid-19, reduzindo o crescimento da economia a partir da segunda metade de 2022. As previsões de crescimento para 2023 têm índices similares ao período pré-pandêmico (ao redor de 2% do PIB).

No cômputo geral, o governo Sánchez logrou manter estáveis os níveis de renda e bem-estar da população espanhola na era da COVID-19. O combate às desigualdades sociais –antiga bandeira dos socialistas – se traduziu na diminuição do índice de GINI desde 2019 e na geração de empregos formais, reduzindo a taxa de desemprego para patamares próximos de 10% da força de trabalho. O Investimento Externo Direto aumentou quase 50% (mesmo com a queda de 2020), bem como o déficit na balança comercial (que quase dobrou, após o início da guerra). Se a pandemia representou uma dimensão destrutiva da globalização, as sociedade nacionais conseguiram se reintegrar parcialmente ao cabo de quatro anos, reativando elos globais.

Mesmo assim, o desempenho político de Sánchez foi impactado pela sangria da pandemia. As mais de 120 mil vítimas representam o maior contingente de espanhóis mortos desde a Guerra Civil. A saída do vice premier Pablo Iglesias (Unidas Podemos) coincidiu com o auge da mortalidade da Covid-19 na península ibérica em 2021 e abalou a coalizão governante. A adoção de medidas restritivas de direitos entre 2020 e 2021 reduziu a legitimidade política da esquerda perante a população. Rusgas históricas entre radicais de UP e o pragmatismo do PSOE se acentuaram até 2023. A coalizão de esquerda vencedora em 2019 – a primeira desde a década de 1930 – se desagregou ao longo da pandemia, e ambos os processos favoreceram a remontada dos conservadores. A direita espanhola, que obteve conjuntamente 1/3 dos votos em 2019, agora representa quase a metade do eleitorado.

Outra questão que o governo Sánchez deixou em aberto é o status da autonomia catalã, após as tentativas político-jurídicas de secessão da década passada. Após as negociações entre as Cortes e a Generalitat emperrarem durante a pandemia, os resultados eleitorais de 2023 deixaram o PSOE dependente do apoio do partido independentista Junts per Catalunya, do líder exilado Carles Puigdemont – que já anunciou sua intenção de bloquear a formação de um novo governo. Ao passo que a questão catalã segue em aberto, outras ambições autonomistas se apresentam à mesa dos vencedores de 23 de Julho. O Partido Nacionalista Basco (PNV) acaba de recusar convite do PP para formar a maioria das Cortes.

O impasse na política espanhola cresce de vulto, num mundo fraturado pela guerra de Vladimir Putin e pela competição entre blocos econômicos. A configuração do futuro governo da Espanha interfere significativamente no apoio europeu à Ucrânia e nas negociações entre União Europeia e Mercosul, que esbarram em concessões mútuas, adiadas por décadas de cooperação institucionalizada em retração no plano internacional.

As eleições na Espanha revelam a dimensão dos impactos da pandemia nas democracias contemporâneas. A Covid-19 não mudou toda a configuração da esfera política de súbito. O novo Coronavírus se alimentou de antigas fragilidades e persistentes impasses sociais. A doença potencializou lacunas entre as sociedades e no interior dessas, revelando limites da democracia. O populismo naufragou no tsunami da pandemia. E mesmo governos que podem se orgulhar da performance face ao novo Coronavírus não saíram ilesos.

A Covid-19 permanece uma coordenada fundamental do nosso futuro próximo. No “novo normal”, a democracia permanece sob impasse, com desafios e potenciais inconclusos.

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