Quatro meses após os ataques terroristas realizados pelo grupo Hamas contra Israel por terra, mar e ar, a Palestina permanece um território ocupado. A Faixa de Gaza simboliza essa situação paradoxal. A ausência do estado palestino se tornou ameaça ao estado de Israel (a ocupar Gaza ilegalmente desde 1948). Dos territórios ocupados o Hamas fez mil mortos e centenas de reféns.
Desde 7 de Outubro, mais de 30 mil pessoas foram mortas em Gaza pelas forças de defesa de Israel, em represaria aos ataques do Hamas. Mais de 1 milhão de pessoas foram forçosamente retiradas de suas casas e se abrigam precariamente com auxílio da Organização das Nações Unidas e de ONGs. Vivendo em condições subhumanas, os habitantes da Palestina não dispõem do aparato legal e institucional de um estado garantidor dos direitos ao longo daquele território. Recentemente, centenas de refugiados e deslocados internos foram mortos por militares israelenses durante a entrega de auxílio humanitário internacional. O massacre lembrou os dias mais sombrios da Guerra Civil no Líbano, durante a intervenção militar de Israel no país vizinho.
Diante da persistência do conflito, os olhos da opinião pública buscam com inquietação respostas para a perplexidade. A brutalidade do ataque do Hamas foi respondida com ainda maior brutalidade pelo estado de Israel. O cenário de conflito se ampliou – além da ação de outros grupos paramilitares (Jihad Islâmica, Hezbollah), 2023 terminou com com ataques de Israel e do Irã a países vizinhos (Lìbano, Síria, Iraque e Paquistão). Além da violência exposta nas ações de estados e grupos armados, assistimos a uma disputa retórica na qual os adversários utilizaram dinamite verbal na busca por convencer corações e mentes, auferir apoios e recursos.
É possível separar palavras das ações nas Relações Internacionais. A disputa militar e o embate retórico operam em diferentes tabuleiros e possuem efeitos diferenciados no jogo diplomático.
Em janeiro de 2024, a África do Sul levou à Corte Internacional de Justiça (órgão judicial da ONU) a ocupação israelense na Palestino. Nas palavras do governo sulafricano, a ocupação se tornou pretexto para um genocídio. O governo de Israel protestou, ao passo que estados do Sul Global se mobilizaram em defesa da ação na CIJ. O Brasil foi um dos estados que endossou essa causa.
Em fevereiro de 2024, convidado de honra na cúpula da União Africana em Adis-Abeba (Etiópia), o presidente brasileiro Lula comparou a violência praticada por Israel em Gaza com o Holocausto perpetrado pelos nazistas contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial. A comparação provocou imediato repúdio por parte do governo Benjamin Netanyahu, que exigiu retratação.
Em novembro de 2023, na conferência de auxílio humanitário organizada em Paris pelo presidente francês Emmanuel Macron, o governo brasileiro se referiu ao conflito em Gaza como genocídio. Naquele contexto, as palavras do chanceler Mauro Vieira foram lidas como reação ao fracasso diplomático então em curso na ONU. Durante a presidência brasileira no Conselho de Segurança, três propostas de resolução foram vetadas pelo governo dos Estados Unidos, impedindo um cessar-fogo humanitário em Gaza que aliviaria o sofrimento da população local.
Em 2023, o Brasil alimentou expectativas de atuar como mediador credenciado do Sul Global. Mobilizou instituições internacionais (caso da ONU) para promover suas palavras e suas ações. Antes da fala de Vieira, o país se pautou pela moderação verbal, quando diferentes propostas de mediação se ofertavam em mesas imaginárias para apreciação da opinião pública mundial (caso das propostas da França, da China e de uma coalizão de estados membros da União Africana).
A postura “neutra” não promoveu os objetivos de política externa e tampouco facilitou a saída de nacionais brasileiros retidos na região do conflito. O Brasil colheu dissabores: os brasileiros permaneceram semanas retidos à espera da autorização de Israel e Egito para deixar a Palestina. A fala de Lula sinaliza uma mudança de rota da atuação brasileira no conflito em Gaza. Até o momento, nenhuma proposta de cessar-fogo vingou. Nas negociações em curso, o Catar opera como facilitador do diálogo junto ao Hamas, ao passo que os Estados Unidos permanecem
o grande aliado israelense. França (representando a União Europeia) e Egito (membro da União Africana e dos BRICS) aparecem como elos de ligação mais próximos do papel de mediadores. Ao passo que os papéis da negociação se estabilizaram, o Brasil contraiu suas expectativas. Doravante, as palavras brasileiras passaram a importar mais que as ações.
Ao proferir críticas a Netanyahu e ao conflito em Gaza na Etiópia (estado recém-admitido nos BRICS), o Brasil mobilizou de outra forma as instituições internacionais. As críticas a Israel se misturaram com críticas mais amplas à governança global e às instituições criadas para manter a ordem internacional pós-1945. Sintomaticamente, a fala de Lula antecedeu em questão de dias a cúpula ministerial dos sherpas do G-20, realizada em fins de Fevereiro no Rio de Janeiro. Na cúpula, tanto Lula quanto os negociadores brasileiros reforçaram posições assumidas na Etiópia, agora tornadas metas gerais para o G-20 na presidência brasileira – tais como o combate à fome e a redução do investimento em armamentos em prol da promoção da sustentabilidade.
Mesmo distante do papel de mediador em Gaza, a fala de Lula ecoou nos salões da diplomacia. Na passagem de bastão entre membros dos BRICS (da Índia ao Brasil), Lula ofereceu à opinião pública uma posição inequívoca de crítica às políticas israelenses em Gaza, que foram além de afagar expectativas e ambições do Sul Global em uma ordem internacional em transformação. O tom de continuidade entre as falas em Adis-Abeba e Rio foi mais visível que diferenças entre os governos Narendra Modi e Lula, mais significativo que o abismo entre o crescimento econômico indiano (7.6% em 2023) e o retorno do Brasil ao grupo das 10 maiores economias do planeta. Do fracasso diplomático e ostracismo da mediação, o Brasil extraiu holofotes e reconhecimento.
Mesmo quando o Sul Global não se mostra capaz de mudar as dinâmicas em curso num sistema internacional desigual, mudanças de curso como as efetivadas pelo Brasil revelam a existência de contribuições alternativas – cujas potencialidades residem nas relações internacionais do Sul. Ao mobilizar o Sul Global em crítica às instituições vigentes, outros arranjos se tornam visíveis. Mesmo que, por hora, ainda permaneçam mais próximos do plano das hipóteses do que de fato.
As palavras permaneceram importantes ao longo da mudança de posicionamento. Descoladas das ambições anteriores, operam em outros tabuleiros. O risco de afrontar politicamente Israel não se traduziu em interrupção de fluxos econômicos (em crescimento, no passado recente) ou estancamento da cooperação entre os países (inclusive na sensível área da segurança publica). O custo politico das declarações de Lula foi suavizado a seguir, quando até os Estados Unidos e a União Europeia criticaram Netanyahu pelo massacre durante a entrega de auxílio humanitário e se opuseram frontalmente a planos israelenses de incursão militar por terra na cidade de Rafah.
Por outro lado, ao se referir ao conflito em Gaza como genocídio, o Brasil não oferece nenhum curso de ação para salvaguardar direitos do povo palestino. O Brasil não tomou iniciativas políticas ou legais para coibir a prática do genocídio (para além do endosso à ação sulafricana na CIJ], tampouco se preocupou com consequências da continuidade do conflito em Gaza. No mais, o Brasil repetiu posição tradicional de sua diplomacia: a defesa retórica de um estado palestino.
Na contínua ausência do estado palestino, o Brasil deixou Gaza entre palavras e omissões, em busca de outras oportunidades de projeção como uma democracia emergente do Sul Global.
Artigo de autoria de Carlos Frederico Pereira da Silva Gama – professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins