Um mês após o início do conflito entre o grupo paramilitar Hamas e o estado de Israel, 32 cidadãos do Brasil permaneciam retidos na Faixa de Gaza, aguardando autorização do estado egípcio para deixar o território palestino através da passagem de Rafah. A autorização veio apenas em 12 de novembro, 35 dias após o início das negociações com os governos de Israel e do Egito.
Como pano de fundo desse drama, os brasileiros estavam cercados pelos incessantes bombardeios de Israel, que ocupou militarmente o restante de Gaza em resposta aos ataques do Hamas. Dez mil palestinos foram mortos pelas forças de defesa de Israel nesse mês. A escala do extermínio não passou despercebida pela comunidade internacional. A palavra “genocídio” passou a ser utilizada com frequência, inclusive por autoridades brasileiras, por ocasião da conferência de auxílio humanitário organizada pelo governo da França.
Ao longo desse mês, outros 1200 cidadãos brasileiros foram resgatados por aviões da FAB, após negociações entre os governos liderados por Lula e por Benjamin Netanyahu. Em contraste, a retirada dos brasileiros do território palestino não depende apenas de bons ofícios da diplomacia. Após 15 anos de ocupação e bombardeios de Israel, a infraestrutura da Faixa de Gaza está destruída. Além da falta de aeroportos funcionais, 2 milhões de pessoas carecem de água, luz e mantimentos.
As ações militares do Hamas fizeram mais de 1000 vítimas israelenses, além de manter centenas de pessoas como reféns. O ataque terrorista foi respondido com força desproporcional por Israel. Além das mortes em massa que configuram diversos crimes no Direito Internacional, a reação israelense alimentou uma catástrofe humanitária em Gaza e pressionou os países vizinhos, caso do Egito.
Em meio ao cenário desolador, a comunidade internacional se posicionou, com resultados desiguais.
Potências tradicionais correram em defesa de seus aliados. Os Estados Unidos de Joe Biden (em campanha pela reeleição) adotaram a retorica da “guerra ao Terror” dos tempos de George W. Bush. O apoio incondicional a Israel incluiu a retirada de cidadãos norte-americanos da região e o bloqueio de uma proposta brasileira no Conselho de Segurança da ONU que previa “pausas humanitárias”. A Rússia, por seu turno, buscou preservar seu aliado Irã (financiador do Hamas) com outra proposta na ONU, que se limitou a condenar a reação militar israelense e clamar por assistência humanitária. A proposta russa também foi bloqueada pelos EUA, mas conseguiu fazer com que o mundo esquecesse a fracassada guerra russa na Ucrânia. Outras potências agiram com cautela. China, Brasil e União Europeia investiram no front diplomático, em busca de viabilizar o auxílio humanitário.
Ao longo de 2023, o terceiro governo Lula buscou reconstruir a política externa brasileira, unindo a tradicional expertise do Itamaraty ao renovado protagonismo da diplomacia presidencial. Essa tentativa fez com que o Brasil assumisse postura de equidistância nos conflitos globais em curso.
Na Ucrânia, tal postura fez naufragar ambições presidenciais de mediar a guerra de Vladimir Putin. Rechaçada pela própria Ucrânia, UE e EUA, a postura do Brasil tampouco moveu os BRICS para além da conveniente neutralidade, encabeçada pela China. À medida que Putin se tornava um procurado por tribunais internacionais, a posição brasileira se tornou insustentável. O protelado encontro de Lula com Volodymyr Zelensky não mudou a imagem de um Brasil isolado.
No Oriente Médio, a tentativa do Brasil apelar simultaneamente aos países árabes e a Israel como promotor da paz bateu de frente com a rotina do conflito. Cidadãos brasileiros ficaram ilhados num labirinto geopolítico, entre violências praticadas pelo Hamas e forças de defesa de Israel. A retirada dos brasileiros da região teve que ser negociada diretamente com Netanyahu e a ditadura egípcia. Apesar dos esforços do chanceler Mauro Vieira e do assessor especial Celso Amorim para aparar arestas em múltiplas frentes de negociação, a atitude proativa do Brasil no Conselho de Segurança em Outubro, durante a presidência provisória brasileira, elevou as tensões.
Uma série de provocações do governo israelense se seguiu, limitando o impacto das ações do Brasil.
O veto dos EUA à proposta brasileira (que refletia os anseios de grande parte da comunidade internacional) foi interpretado como sinalização de que Israel via o Brasil alinhado aos países árabes. Doravante, cidadãos brasileiros foram excluídos das listas de nacionais autorizados a deixar Gaza. Em Novembro, o embaixador de Israel no Brasil se encontrou com o ex-presidente Jair Bolsonaro. Dias depois, o governo israelense atribuiu ao serviço secreto Mossad informações que levaram à prisão, pela Polícia Federal brasileira, de suspeitos de integrar o grupo paramilitar libanês Hezbollah.
Face à situação dos brasileiros em Gaza, o governo Lula não respondeu à altura essas provocações israelenses. Os aviões da FAB permaneceram em solo egípcio, aguardando a reabertura da fronteira – que ocorreu na manhã de domingo, 12 de Novembro, após 35 dias de retenção. Outras dezenas de brasileiros aguardam em Gaza para ser resgatados, sem previsão de saída.
As expectativas frustradas da diplomacia brasileira são sintomas de um mal mais amplo que acomete a comunidade internacional no século 21. A fragmentação se aprofundou nas duas últimas décadas, nas quais a cooperação institucionalizada declinou ao longo de crises que se sobrepuseram. A maior parte delas permanece sem solução. Ambições emergentes esbarraram em cenários contraditórios, de fronteiras borradas entre política doméstica e relações internacionais. A crença de que potências emergentes teriam vantagens frente às tradicionais perdeu fôlego, à medida que a performance dos novos protagonistas não difere significativamente do contexto geral.
Os limites do governo brasileiro ficam mais salientes em cenários nos quais o país não pretende empreender esforços militares ou de pacificação. Além da diplomacia brasileira reduzir suas ambições, a soberania brasileira ficou em cheque, diante da prolongada retenção de seus cidadãos em terras distantes. Em contraste, potências tradicionais auferem ou mantém alianças prolongadas nos cenários de conflito. Atuam diretamente, por vezes prejudicando organizações internacionais.
A derrota diplomática brasileira ocorreu num contexto de reconstrução interna, com uso intensivo das instituições internacionais (estas em situação de grande fragilidade). O conflito em Gaza se une à guerra russa contra a Ucrânia como mais um obstáculo às pretensões de países emergentes que pretendem ascender utilizando o aparato institucional concebido após a Segunda Guerra Mundial.
Conflitos na Ucrânia e em Gaza polarizaram o sistema internacional – limitando espaços disponíveis para inovação. Crises na cooperação penalizam poderes em ascensão. Narrativas conflitantes tendem a beneficiar poderes estabelecidos, à medida que emergentes precisam construir pontes para criar novos lugares de ação. A frustração dos esforços brasileiros em Gaza difere da invisibilidade do governo Bolsonaro. A busca por protagonismo envolve esforços maiores que os da neutralidade ou a irrelevância. A tentativa de agradar todos os lados num mundo polarizado fornece oportunidades para o Brasil repensar o status que almeja ocupar num sistema em transformação.
* Artigo de autoria de Carlos Frederico Pereira da Silva Gama – professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins