Em seus inúmeros tratados sobre a fluidez dos tempos modernos, o pensador polonês Zygmunt Bauman denunciou, nas sociedades contemporâneas, um desapego cada vez maior das pessoas às instituições e códigos sociais, os quais pareciam dissolver-se e perderem suas formas, tornando-se como água, algo que o autor denominaria como modernidade líquida. Em todas as instâncias e níveis de nossa sociedade essa dissolução pode ser encontrada, em maior ou menor grau.
Na modernidade líquida apresentada por Bauman, o sujeito contemporâneo esvai-se dos elos que o ligam a outras pessoas, buscando tão somente sua sobrevivência numa lógica individual e afirmativa. Esse “autoempoderamento” vem como um discurso defensivo: ninguém liga para ninguém e nem considera o que ninguém acha, porque, para esses indivíduos, vale tão somente a sua “consciência”, o seu “senso de dever cumprido”. A regra é considerar todo questionamento como “intolerância”, de forma que todos estejam devidamente protegidos da crítica ou da reflexão. Afirmar que “não existem mais verdades” torna, de certa forma, todas as mentiras caminhos possíveis.
Quando nos reportamos às escolas de samba e à sua cultura peculiar, é inevitável encontrarmos, em seu trajeto histórico, conflitos permanentes entre suas tradições e as ideias de renovação. A escola de samba sempre sobreviveu da tradição oral e da transmissão de conhecimento através de seus antepassados. O grande símbolo da transmissão de conhecimento das escolas de samba são os baluartes, representados pelos grupos antigos de fundadores e conhecedores que são chamados de Velha Guarda. Eles mesmos fundamentaram e inovaram tudo.
A literatura de referência das escolas de samba sofreu dois males crônicos: o descaso histórico que relegou o assunto a raros registros escritos (sendo os jornais as fontes de informação mais precisas do limiar das agremiações) e o academicismo vicioso, que tentou o tempo todo mistificar e primitivar a manifestação cultural, negando-lhe toda essência artística por puro preconceito, dando-lhe apenas visão antropológica mancomunada com o pensamento elitista que sempre regeu o meio acadêmico deste país. Ainda hoje podemos perceber como a falta de informação faz pessoas repetirem coisas falsas como “verdades do passado”. Por outro lado, teóricos longe das escolas de samba forçam a barra com conhecimento bruto que não se aplica à realidade do samba, atraindo gente hipnotizada ou fanatizada a seguir discursos retrógrados para ganhar bolsa de estudo ou a distorcer fatos para obter aprovação e créditos universitários.
Hoje, em pleno século XXI, é de se admirar que a escola de samba, midiatizada de forma errada por uma TV que a desconhece e teorizada de forma viciosa por pensadores mais interessados em suas teses do que na verdade dos fatos, ainda sobreviva. E é exatamente na forma mais primitiva de transmissão de conhecimento – o saber dos ancestrais – que ainda é possível a sua sobrevivência.
Que fazemos, então? Que ouvidos podemos dar, então, aos sábios guardiões do conhecimento que a escola de samba tem?
Estamos formando uma geração autodidata, empenhada, pragmática, obsessiva. Gente que – como naquela definição de liquidez de Bauman – está fazendo muitas coisas, mas só admite a conexão se for para ampliar seus caminhos. Não querem a troca, apenas a própria fala. Não querem ouvir, querem apenas “fazer”. Ao contrário dos que ouviram os sábios e guardiões das Velhas Guardas no passado, “os novinhos” não sentam para aprender e nem para esperar sua vez: eles saem do ventre já “atuando”. Julgam não terem tempo para aprender ou confrontar nada, porque seu tempo diz respeito apenas àquilo que produzem. Estão “empoderados” uns pelos outros numa lógica de falsa solidariedade: já que ninguém reconhece o valor de ninguém, a não ser o seu próprio, a saída é estimular no outro a alienação do valor crítico e da reflexão, para que todos pareçam irmanados quando, na verdade, todos se querem cada vez mais impedidos de refletir sobre aquilo que fazem!
Se nossos jovens só sabem fazer e não sabem ouvir, eles não têm tempo para ouvir a Velha Guarda. Se não os ouvem, perdem a noção do que é legado, fundamento, tradição. Por isso vaiam uma Velha Guarda em quadra de escola de samba, cantam músicas de futebol em ensaio de quadra, não decoram o hino de sua escola, não tiram o chapéu quando o pavilhão se apresenta, não choram antes de entrar na avenida, homenageiam personagens alheios ao que deveria fortalecer o samba, consideram sua expressão pessoal mais importante do que o respeito a um fundamento de dança ou postura na avenida, acham que sexismo e gênero são questões de ego e não de adequação, consideram uma bandeira de escola apenas um símbolo. Perdeu-se a reverência, sim. Mas porque, primeiro, perdeu-se a referência!
Como em todo sistema social falho, a saída é descambar para a polarização. Ou se aplica o “castigo sumário” (“expulsa!”, “elimina!”, “rejeita!) ou se apregoa a “impunidade funcional” (“já vi coisa pior!”, “já fizeram isso outra vez!”, “queria ver se fosse fulano”). Em ambos os extremos, percebe-se a debilidade do sistema: nem a punição nem a falsa piedade corrigem o erro, visto que não se apontam as causas e não se admite a omissão. Mais uma vez, sobra discurso e falta resultado prático.
Sou muito favorável às mutações e à dinâmica dos processos que envolvem as escolas de samba, sim. E não sou um adepto das hipocrisias punitivas: aquilo que não ensinamos, não temos o direito de cobrar, depois! O que me pergunto, no entanto, é: até que ponto as novas gerações, tão convictas de seus egos, pensam que sobreviverão sem refletirem sobre aquilo que estão fazendo?
Porque os antigos foram testados, questionados, se questionaram. Apanharam muito para que tudo isto que aqui está pudesse ser conquistado. Hoje, só se quer mídia, repercussão, curtidas e elogios. O abismo que separa o sambista da reflexão é propocional à sua arrogância de não precisar ouvir ninguém e achar que está fazendo, do seu jeito, o samba ser samba.
Os erros que estamos vendo apontam, a meu ver, para uma verdade que está diante de todos nós: faltou literalmente educação, e por isso se erra tanto! Deixaram de ensinar a base, porque a lógica é de produtividade, não de conhecimento. Por isso é tudo tão volumoso por fora e tão oco por dentro.
Quem não conhece o legado, os fundamentos e não sabe respeitar os valores, vai chacoalhar, fazer barulho e firula, mas vai passar despercebido em termos de contribuição verdadeira para o engrandecimento do samba. Correndo o risco de acabar tudo em mínima liquidez. Por pura perda de referência!